(Uma breve passagem por Seixas para antecipar um Natal que este ano não será passado por aquelas bandas de ar leve e por estes dias bem frio, de gente afável e por agora ainda com baixa reincidência pandémica. Por isso pouco tempo para grandes desenvolvimentos neste espaço reflexivo. Mas mesmo assim oportunidade para trazer à reflexão importante e decisiva crónica de António Guerreiro no ÍPSILON do Público de hoje, link aqui, que também nos trouxe a infeliz notícia do desaparecimento do Inimigo Público, perdido na voraz agonia dos jornais em papel, agravada com a subida do preço do papel. A crónica versa contundentemente de uma crítica ao nacionalismo linguístico que Miguel Sousa Tavares deixou transparecer na sua crónica no Expresso do passado fim de semana. É das melhores denúncias da apropriação nacionalista de uma língua, neste caso a portuguesa e só essa pequena crónica justificaria a compra do jornal.)
A querela implícita na crónica de Miguel Sousa Tavares (MST) é o menos importante nesta questão, mas não há nada como revelá-la. O foco da reação nacionalista de MST teve que ver com declarações de um escritor cabo-verdiano que invocavam a justeza da destruição de alguns sinais da presença colonial portuguesa. Esta questão não é o mais importante da reflexão sobre a apropriação nacionalista da língua, mas isso não significa como é óbvio que não seja matéria que merece um amplo debate, conduzido sobretudo a partir das perspetivas de quem sofreu os efeitos do colonialismo e não de quem esteve do outro lado da barricada e não esquecendo que no país colonizador nem toda a gente foi “colonialista”.
O problema é que MST não discute em si essa questão, antes se refugia na acusação de quem usa mal a língua que lhe foi deixada precisamente por quem lhe deixou as tais estátuas no seu território.
António Guerreiro acerta na mouche quando denuncia a pérfida tentativa de estabelecer um nexo indissociável entre língua, pátria e nação. Estou plenamente de acordo com o cronista quando ele refere que o escritor cabo-verdiano Mário Lúcio tem tanta legitimidade em fazer parte da construção da língua portuguesa do que o próprio MST. Isto não se confunde com a por vezes generalizada e hipócrita comiseração de alguns portugueses pelo estatuto de colonizador. O que está em causa é entender a língua como um símbolo do nacionalismo. Hoje, a construção da língua portuguesa e a sua afirmação no mundo ultrapassou já definitivamente a pequenez da nossa dimensão. O povo cabo-verdiano pode querer apagar imagens físicas e infraestruturais da presença do colonizador e ser em simultâneo um construtor ativo da língua portuguesa.
E nada melhor, com a devida vénia ao autor, um dos raros intelectuais que ainda subsiste em Portugal, do que citar o último longo parágrafo da crónica, que tem além do mais o enorme prazer de recordar uma das pensadoras que ocupa um lugar de relevo nas minhas influências, Hannah Arendt:
“Deve ser dito a Miguel Sousa Tavares que uma língua não se possui, não tem proprietários, não pode ser objecto desse gesto generoso e voluntário que consiste em “deixar” em herança a um outrem “esta extraordinária língua”, a juntar às estátuas. Deve ser-lhe dito que a ligação natural entre língua e nação, e entre língua e povo, foi sempre justificada pelos mitos do enraizamento. A assimilação língua-nação designa geralmente a noção de “génio” da língua. E a etimologia de “génio”, o genos grego, está ligado ao nascimento, aos genes. Ocorre aqui lembrar uma entrevista de Hannah Arendt, em 1964, treze anos depois de se ter naturalizado cidadã americana. Depois de ela afirmar que nunca se tinha sentido parte de um povo (nem sequer do povo judaico) nem de uma pátria, o entrevistador pergunta-lhe: “O que resta?”. Ela responde: “Só resta a língua”, a língua alemã que os seus presumidos e encarniçados proprietários queriam que fosse, a par do sangue, um factor de enraizamento. Hannah Arendt recusava assim as confusões que se estabelecem entre língua e pátria, entre língua e povo. E mostrava que os presumidos proprietários da língua, por mais que se tivessem esforçado por isso, não tinham conseguido deserdá-la porque uma língua herda-se sem que um “nós”, ou alguém, a deixe em herança”.
Contundente e decisivo, em bom português.
Sem comentários:
Enviar um comentário