sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

A DISRUPÇÃO DO “SUPPLY CHAIN”

 

(As cadeias de valor globais sobre as quais se construiu a fase da globalização que antecedeu a pandemia não estão bem de saúde. Roturas de oferta e a clássica ameaça inflacionária por escassez emergiram subitamente no capitalismo global, comprometendo o que parecia adquirido. E o que impressiona é a diversidade de situações em que a rotura de stocks se observa, dos materiais de construção às componentes, passando pelas madeiras e pela escassez de chips, tudo parece contradizer os padrões de flexibilidade em que o capitalismo global esteve organizado, com os stocks a serem reduzidos ao mínimo e a serem recompostos num ápice, tudo facilitado pelo mecanismo fluidos dos transportes à escala global. Como é óbvio a explosão pandémica precipitou esta disrupção, o choque EUA-China ajudou à missa, mas hoje torna-se praticamente impossível avaliar se a disrupção existirá enquanto a pandemia estiver ativa ou se, pelo contrário, algo de mais profundo e pós-pandémico está a ser forjado.

A fabulosa capa, como tantas outras, da New Yorker datada de 6 de dezembro, a mesma que publica a também fabulosa reportagem sobre a obscura intervenção da Guarda Costeira Líbia no aprisionamento de migrantes no Mediterrâneo, aqui comentada em post próprio, é um portento de simbolismo. O Pai Natal esforça-se por fazer atracar um navio de contentores (o símbolo máximo do supply chain), enquanto a base popular aplaude a chegada das reposições de stocks.

A extensão massiva das cadeias de valor globais, com processos cada vez mais sofisticados de organização mundial da produção em função das condições de custos e de produção (para uma tecnologia relativamente padronizada) que cada lugar de produção pode representar como centro de custos, é uma consequência lógica e direta de procura de eficiência pelo cálculo económico privado. Segundo essa lógica de apreciação, sempre que um produto intermédio ou uma etapa da produção pode ser externalizada a um custo mais baixo, em igualdade de circunstâncias de tecnologia de produção, o aprofundamento e diversificação do “supply chain” são sempre vantajosas. Em grande medida foi isso que aconteceu.

Porém, se acrescentarmos à equação do problema uma lógica suplementar de custos sociais, ou seja de custos que tenham em conta outros aspetos para lá dos que determinam a eficiência da operação, rapidamente se percebe que a extensão da cadeia de valor é questionável. Entre as diferentes razões que podem explicar a conflitualidade entre as duas lógicas de avaliação da operação a do risco associado à extensão da cadeia é tão evidente que até dá que pensar como terá sido ignorado durante tão largo tempo. Tal como Daren Acemoglu (o Professor do MIT que o Pinho dos corninhos para o Parlamento trouxe a Portugal para glorificar a sua própria internacionalização) o assinala no Project Syndicate (link aqui), quanto mais extensa se torna a cadeia de valor mais provável é que uma só perturbação nessa cadeia possa colocar em causa todo o processo de produção. E não é de modo nenhum raro que uma situação de falência empresarial num dos nós da cadeia se projete depois em sucessivas quedas ao longo da referida cadeia. Dizem os manuais que, por se tratar de projetos privados, esse risco é normalmente internalizado pelos operadores nos seus cálculos de investimento. Ora isto é o que dizem os manuais. Mas sabemos também, talvez através de manuais mais avançados, que o efeito de enviesamento que o “curto-prazismo” das decisões existe, já que as margens de lucro que a extensão da cadeia de valor possibilita tendem a fazer subvalorar o risco. 

A extensão do “supply chain” não pode assim ser desligada dos seus potenciais efeitos sistémicos (externalidades neste caso negativas). A pandemia limitou-se a mostrar brutalmente que esse risco sistémico não é negligenciável. Talvez por isso, alguns países, com os EUA à frente, estudaram a matéria em profundidade, no sentido de identificar caminhar para mitigar esse risco sistémico. A Casa Branca publicou em junho do presente ano um documento, BUILDING RESILIENT SUPPLY CHAINS, REVITALIZING AMERICAN MANUFACTURING, AND FOSTERING BROAD-BASED GROWTH que é em si um verdadeiro manual do que pode estar em causa e das vias mais pertinentes para mitigar o risco sistémico atrás referido.

Não menos importante, acresce que as extensas cadeias de valor globais adquirem todo um outro significado em contexto de choque político entre as economias que pontificam de modo mais proeminente nessas cadeias de valor. Não é preciso ser um sábio político para concluir que o embate EUA-China atravessa praticamente todas as cadeias de valor dos tempos de hoje, associando ao risco sistémico riscos de vulnerabilidade política insuportável. E já não estamos a falar por exemplo da indústria da defesa.

Todo este processo se for repensado com lucidez abre interessantes oportunidades de reconsideração da política industrial para os países em plena transformação estrutural das suas economias. Este tema já esteve na agenda europeia, posso admitir que ainda lá esteja, mas a verdade é que não se pressentem grandes consequências. Isso acontece porque para a União Europeia não basta reivindicar o regresso da política industrial para o seu reposicionamento nas cadeias de valor globais. Dado o desenvolvimento desigual no seu interior e os diferentes estádios de transformação estrutural da sua especialização produtiva em que as suas economias integrantes se encontram, uma política industrial nova para a União significa também a necessidade de reconsiderar políticas industriais para as economias nesses estádios de transformação. E isto parece ser areia de mais para a cabeça dos Diretórios económicos europeus.

Mas nem oito nem oitenta. Imaginar que as cadeias de valor globais serão varridas e colocadas a zero parece-me ingenuidade a mais. E mais do que isso a concretizar-se seria a consequência do caos no comércio internacional e isso não se recomenda sobretudo para as economias de pequena dimensão como a nossa.

Gostaria que o PS (e porque não o PSD) refletissem nos seus programas eleitorais sobre esta matéria, até porque estamos no início de um novo período de programação, no qual vão ser tomadas decisões sobre apreciação de projetos que seriam enriquecidas com opções nacionais de reposicionamento nas cadeias de valor globais, não obviamente em todas mas sobretudo naquelas em que o crescimento eficiente da incorporação nacional possa ser uma realidade.

Não para memória futura, mas para memória imediata, pelo menos para depois das rabanadas e do Bolo-rei.

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