terça-feira, 14 de dezembro de 2021

QUE LUGAR TERÁ MERKEL NA HISTÓRIA?

 


(A imagem, ver acima, e o artigo que o Economist de 11 de dezembro de 2021, link aqui, dedica à senhora Merkel e à sua saída de cena da governação têm algo de cruel para uma personalidade cuja sucessão nos sugere tanta indeterminação, apesar dela se ter operado com uma coligação governamental, chefiada pelo SPD e integrando os Verdes e os Liberais que aparentemente irá contribuir para o aprofundamento de algumas agendas europeias, particularmente da agenda climática, energética e ambiental. Neste tipo de coisas, o Economist não costuma falhar. Por isso, talvez valha a pena indagar se, oculta nesse diagnóstico algo cruel, se perfila uma realidade objetiva largamente derivada do momento muito interrogado em que o projeto de construção europeia se encontra.)

A imagem a que o Economist recorre para ilustrar o significado da saída de cena de Angela Merkel em direção a uma vida de casal exemplar na sua humildade de vida e de estatuto de simples cidadãos alemães é manifestamente cruel para uma personagem que por muitos começou odiada e acabou para muitos outros sendo reconhecida como alguém que se bateu galhardamente pelos equilíbrios europeus. A metáfora é poderosa. As pegadas que Merkel deixa na sua saída são pegadas na neve, logo suscetíveis de rápido desaparecimento. Não será isto uma negação da história?

O artigo que acompanha a imagem metafórica atrás descrita tem uma passagem que não pode ser mais letal e como as palavras por vezes mordem e corroem:

“(…) Ela ajudou o clube a sobreviver em alguns tempos difíceis, ainda que não o tenha moldado. A memória da carreira da senhora Merkel apagar-se-á como pegadas na neve. Manteve o clube unido, ainda que dificilmente tenha deixado uma marca.”

O que é que subjaz a este “statement” demolidor?

Tenho para mim que as personalidades históricas e lideranças políticas que aguentam situações, mesmo em situações limite de evitar roturas irreversíveis, ou seja que não estão por detrás de grandes avanços ou saltos disruptivos no desenvolvimento da história, tendem a deixar menos marcas. Compreende-se a questão. De facto, decisões que, à luz dos contextos de rotura potencial, nos pareceram corajosas e até revolucionárias podem, alterando-se esses mesmos contextos, ser reversíveis e por isso não deixar marcas indeléveis e dificilmente apagáveis. Merkel inscreveu a sua atuação num desses contextos particulares e beneficiou ainda do facto de à altura não se perfilarem, entre os 27, líderes de estatuto similar. Velar por equilíbrios possíveis em contextos de rotura potencial não produz de facto decisões que se projetem no tempo, arrastando consigo uma marca de avanço irreversível.

Veja-se, por exemplo, a sua célebre decisão de abrir numa dada conjuntura de política internacional migratória de extrema gravidade as fronteiras alemãs à entrada de migrantes. Foi um ato heroico, de um risco político elevadíssimo, profundamente humanitário. Todos o reconhecemos e essa decisão foi até responsável por uma alteração de apreciação radical por parte dos que odiavam profundamente a chanceler, com a popularidade sinistra dos bigodinhos à Hitler a ilustrar essa posição. Mas tal decisão heroica e corajosa não alterou a política migratória europeia, simplesmente a suspendeu na altura. O mesmo pode ser dito a nível interno alemão a propósito da decisão de anulação da opção nuclear, ela própria também corajosa e muito na linha do que se tinha passado no Japão. Admito que neste caso a reversibilidade de tal opção tem uma menor probabilidade, mas o Economist sublinha que a procura de uma fonte de energia descarbonizada pode induzir algum ressurgimento de consideração dessa opção, embora não me pareça que a nível europeu a transição energética evolua nesse sentido.

Por fim, pese embora o esforço permanente de Merkel na procura de equilíbrios e de não roturas em temas como a gestão macroeconómica da União (com luta permanente contra os seus próprios “falcões”) ou o estabelecimento de um código de conduta mais vigoroso contra as violações do estado de direito por parte de membros da União (casos da Polónia e da Hungria), nada de estável e irreversível foi estabelecido nessas matérias.

A discípula dileta de Helmut Kohl arrisca-se assim a ter um peso na história bem inferior à do seu progenitor político, simplesmente porque lhe calhou um contexto e uma transição insuscetível de grandes avanços.

Mas convém não ignorar que a história nos reserva surpresas de interpretação. Quem nos assegura que o papel de Merkel não seja revisitado no tempo longo, sobretudo no contexto de acontecimentos futuros que hoje não conseguimos antecipar?

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