sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

AINDA A QUESTÃO DA DEMOCRACIA

 


(A Cimeira a que me referia no meu último post suscitou um vasto conjunto conjunto de reflexões e nesse âmbito é relevante trazer aqui o contributo de um dos mais lúcidos analistas do fenómeno moderno do populismo nas democracias de economias mais ou menos avançadas, Jan-Werner Müller. Recorro frequentemente ao pensamento deste autor para me situar nos diferentes tipos de populismo que hoje pontuam na cena política global e ir contra a corrente da vulgarização. A passagem que hoje vos trago foi dada muito recentemente à estampa no New York Times (link aqui) e disserta brevemente sobre um dos meus temas preferidos – a incerteza em democracia.

O melhor é ir direto ao assunto e traduzir a passagem que deu origem a este post:

“(…) A incerteza não é em si um valor – depois de quase dois anos de pandemia, podemos ser perdoados pelo facto de desejarmos que o futuro fosse mais certo. Todavia, a incerteza em democracia constitui, de raiz, o resultado da ‘liberdade’ dos cidadãos. Não sabemos o que vai acontecer, porque as pessoas podem mudar o seu pensamento ou trazer algo de inteiramente novo.

Subjacente a isto está algo de intrínseco à democracia: a confiança nos nossos concidadãos. Obviamente que temos primeiro de os reconhecer como tais: entre outras coisas, muitos Trumpistas tendem a negar que perderam eleições porque não olham para as pessoas Negras e mais escuras como pertencendo a uma maioria legítima. Mas o indicador de que uma democracia funciona não é que toda a gente seja civil – o conflito pode ser uma confusão. O indicador é que nenhuma distinção seja estabelecida entre cidadãos de primeira e segunda classe, ou entre a “população real” amada pelos populistas de direita e toda a restante população.

É o casamento entre a certeza e a incerteza que concede à democracia o seu caráter distinto. Alexis de Tocqueville salientou a estranha coexistência nas democracias do caos e da comoção à superfície e da base sólida de confiança que os cidadãos têm uns nos outros e no seu sistema político. Não há naturalmente garantias. Uma ilusão plenamente partilhada nas sociedades ocidentais depois da Guerra Fria foi a de que as democracias iriam sempre autocorrigir-se e renovar-se. Não apenas não era esse o caso mas também aprendemos que os autoritarismos também podem eles próprios aprender com os erros.

(…) As democracias de longo curso têm de ser críticas de si próprias não apenas porque carecem de estabilidade ou padecerem de “democracia excessiva” como as autoridades chinesas afirmam. Têm de preocupar-se precisamente pelo contrário: que pouco possa mudar nos seus sistemas políticos e que alguns não usufruam de igualdade política. Em casa, Mr. Biden tem o seu trabalho interrompido. Os EUA continuam ameaçados elo populismo plutocrático, uma combinação tóxica entre cultura de guerra na base e a tendência para que, no topo, os super-ricos tentem capturar o sistema político.”

Considero esta síntese brilhante só ao alcance de um cientista político de elevada craveira. Retirar da defesa dos valores da democracia o princípio da incerteza (a propósito um título bem mais promissor escolhido pela CNN Portugal do que o de circulatura do quadrado) é instalar uma fonte permanente de insatisfação e de ilusão na educação para a cidadania. E seria bom que os que estão mais próximos do ato nobre de educar, professores, formadores, pais e outros influenciadores abdicassem de vez de contribuir para a emergência de cidadãos como se fossem funcionar em contextos de informação perfeita (e aqui meus amigos que reviravolta profunda o ensino da economia tem de experimentar), que é um princípio para a desilusão e deceção coletivas. A forma como se transmite conhecimento sem apelo ao pensamento crítico, fornecendo material já digerido, apelando à reprodução é uma forma velada de substituir a incerteza pela falsa certeza.

A certeza obtemo-la seguramente em sociedades autocráticas que não concedem aos seus cidadãos a liberdade de pensamento e de decisão, alguém decide por eles transmitindo-lhe por essa via a ilusão da certeza.

É por isso importante que aprendamos a ver nas incertezas da democracia o seu melhor, aquilo que a distingue das autocracias e da ausência de liberdade e que nos pode transformar em cidadãos plenos, retribuídos pelo nosso esforço e penalizados pelos nossos erros. Por isso, sempre me pareceu que desculpabilizar os cidadãos eleitores pelas suas decisões eleitorais não é saudável.

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