(Contra o que desejaríamos e apesar de alguns exemplos de convergência real, não tão intensos como seria necessário, o desenvolvimento desigual no interior do espaço da União Europeia está firme e de boa (má) saúde, manifestando-se em diferentes dimensões. Por muito que as políticas de coesão devam ser consideradas como um importante fator de mitigação desse desenvolvimento desigual sendo, por isso, a boa utilização desses recursos crucial, as disparidades de desenvolvimento tendem a penalizar o sentimento de pertença e de identificação com o projeto europeu e a adiar o fortalecimento de uma opinião pública europeia. A dimensão que trago hoje à vossa reflexão é a do empreendedorismo.
A valorização do empreendedorismo no discurso político, particularmente do chamado empreendedorismo de base tecnológica ou, como o nosso sistema de incentivos lhe chama, empreendedorismo qualificado e criativo, teve na última década um forte incremento. A emergência dos valores do empreendedorismo no discurso político acompanhou de perto a valorização do mercado nas economias ocidentais, em grande medida como discurso de validação do recuo da intervenção pública na economia que os anos 80 e 90, designadamente no quadro de políticas no mercado de trabalho com queda assinalável no grau de proteção do desemprego. Como é óbvio, também a generalização das políticas de inovação e da transferência de conhecimento a partir do sistema científico e de investigação para as empresas contribuiu para a disseminação deste discurso, conduzindo ao mundo do empreendedorismo baseado na tecnologia.
A agressividade de disseminação deste discurso chegou a atingir níveis doentios, como se todas as sociedades e todos os seus membros estivessem em igualdade de circunstâncias e de contextos familiares e de integração social para disparar iniciativas de empreendedorismo. Como o estudo da função empresarial (capacidade de empreendimento ou entrepreneurship) nos ensina, a formação de espírito empresarial é, em grande medida, contexto-dependente, com socialização complexa em que se destacam a socialização na família e na educação, o modo como empresários já instalados socializam a transmissão da sua experiência a filhos ou colaboradores, a cultura de empreendimento nas organizações e nas empresas, a capacidade de assunção de riscos disseminada pelo sistema universitário, a proximidade da investigação às empresas e a presença de fatores étnicos nas sociedades (há culturas mais propensas ao empreendedorismo do que outras, que se revelam sobretudo em contextos de emigração).
Há dias, em conversa com um dos especialistas nacionais na educação para o empreendedorismo, o Professor Jacinto Jardim da Universidade Aberta, recordava-me que eu e o meu Amigo Carlos Costa, ex-Governador do Banco de Portugal, devemos ter sido dos primeiros, senão mesmo os primeiros, na nossa antologia inacabada sobre a Teoria do Subdesenvolvimento (Edições Afrontamento) a tratar a questão do entrepreneurship como fator de desenvolvimento ou de subdesenvolvimento no caso de ter formação obstaculizada.
A sociedade portuguesa está muito lentamente a despertar de uma longa soneca em termos de fatores favoráveis à formação de novo empreendedorismo, que integravam uma educação fortemente securitária e paternalista (com algum revivalismo contemporâneo), de baixos níveis de inovação tecnológica e de investigação científica em meio ou voltada para o meio empresarial, tecido de muito pequenas e médias empresas em que a formação de novos empresários tende a reproduzir os vícios da empresa de onde saíram, de fraquíssima especialização do sistema financeiro e obviamente o panorama de baixas qualificações que nos atormentou durante largos períodos da nossa História.
Dizia-se, até há bem pouco tempo, que a realidade europeia, quando comparada com a americana, nos desfavorecia fortemente em termos de propensão para o empreendedorismo. Durante algo tempo, retorquia-se que a superioridade americana nessa matéria se concretizava a partir de um modelo social e de economia não replicável no chamado modelo social europeu. Verdade se diga que nunca encaixei bem esse argumento. E à medida que países escandinavos, campeões do modelo social europeu, começaram a ser protagonistas na fronteira tecnológica e a gerar ritmos elevados de empreendedorismo de base tecnológica, rapidamente estendidos a outros países europeus, começou a ser compreendido que essa incompatibilidade era pelo parcialmente falsa. Isto não significa que os EUA não continuem a pontificar nos níveis de entrepreneurship. O que começou a perceber-se foi a enorme importância das instituições financeiras especializadas no apoio à dinâmica desse empreendedorismo, com figuras como o capital de risco (Venture Capital) e outros instrumentos de capitalização mais ajustados ao apoio desses processos que os tradicionais instrumentos de dívida.
De qualquer modo, como o sempre sagaz Wolfgang Münchau o assinala (link aqui), foi crescendo o mercado de capital de risco europeu à medida que a dinâmica de criação de empresas de base tecnológica foi atingindo taxas de variação assinaláveis.
O problema é que essa dinâmica emergente foi gerando um novo gap no interior da União e de certo modo ficou sujeito a um enorme abalo com a concretização do malfadado BREXIT. Münchau refere que entre 2017 e 2021 os investimentos em projetos de capital de risco na Europa aumentaram de cerca de 22.000 milhões de dólares para 121.000 milhões, o que não é coisa pouca. O Reino Unido só à sua conta responde por 75.000 milhões de dólares de investimento, bem distanciado dos valores da Alemanha e da França, respetivamente com 30.000 e 25.000 milhões de dólares. A razão subjacente é obviamente o dinamismo e sofisticação de especialização do sistema financeiro britânico. Mas o gap entre o Norte (a que se junta a Suécia, a Suiça e os Países Baixos) e o Sul (em que só a Espanha tem expressão) da Europa é flagrante, cavando pela via do empreendedorismo tecnológico, mais uma via de desenvolvimento desigual. Münchau destaca que, como um em cada cinco unicórnios pertence na Europa ao setor financeiro, o sistema financeiro britânico especializado campeia do ponto de vista da alimentação do processo.
A utilização de capital de risco em Portugal anda pelas páginas iniciais da cartilha e nem o apoio dos instrumentos financeiros com cofinanciamento dos Fundos Estruturais Europeus tem conseguido virar uma quantidade apreciável de novas páginas. A lenta emergência do Banco de Fomento tem penalizado essa intervenção. Creio que já estamos um pouco longe do argumento de que o capital de risco não era bem querido do empresariado português, que não gosta de partilhar a gestão com gente de fora. Se esse argumento é válido para empresas já instaladas, não creio que no empreendedorismo de base tecnológica exista dominantemente esse papão do capital exterior às sociedades que nelas investe para obter uns anos depois o seu retorno com os resultados da inovação. O que tenho ouvido é, antes pelo contrário, que as instituições públicas que geram os incentivos financeiros de instrumentos de capital não funcionam com a agilidade que esses empreendedores encontram em investidores especializados internacionais.
Felizmente que o discurso doentio do empreendedorismo a todo o preço, agressivo e desumanizado perdeu força e que está hoje situado em padrões razoáveis. Afinal, nem as famílias portuguesas se tornaram de repente menos dominantemente securitárias e premiando o risco, nem o sistema universitário foi reorganizado para promover a retribuição do risco, nem o sistema financeiro se especializou como devia e das instituições públicas que gerem os instrumentos financeiros nem falar.
Por isso, como seria inevitável, o tal discurso agressivo compreendeu que se perfilava como um verdadeiro vendedor de banho de cobra, não relevando o contexto. Pena é que tantos jovens e desempregados tenham dado com os burros na água, iludidos porque o empreendedorismo era a grande panaceia para a sua Felicidade.
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