(Sim há rotinas sazonais que nos ajudam a sentir que ainda andamos por cá. Sou um fanático dessas rotinas. Em domínios tão diferentes tais como a floração dos jacarandás, a chegada do vermelho-castanho das folhas e a sua queda dos liquidâmbares que me acompanham visualmente, em casa, no meu teletrabalho, a chegada das aleluias na Páscoa, o Beaujolais Nouveau de que já cantam alguns copos e, pasme-se, o Relatório da Desigualdade, são exemplos ilustrativos. Bem sei que há muita gente institucionalmente de confiança a publicar informação sobre a desigualdade, mas este relatório tem a participação de nomes como Thomas Piketty, Emmanuel Saez e Gabriel Zucman, este ano sob a direção de Lucas Chancel. E isso chega para mim para o considerar a “verdadeira” fonte. O relatório deste ano não foge à regra, link aqui)
Um dos aspetos que mais recomenda a leitura regular deste relatório é o facto de ser dos únicos, senão o único, que documenta a questão da desigualdade do ponto de vista simultaneamente do rendimento e da riqueza. A análise combinada dos fluxos (o rendimento) e dos stocks (a riqueza) é crucial para se compreender de que modo o crescimento económico é ou não neutral (ou enviesado) em termos de desigualdade e de que maneira também a desigualdade da riqueza se repercute em diferentes graus de influência e de poder junto da governação.
A desproporção entre os dados da desigualdade no rendimento e da riqueza que é ilustrada pela imagem acima é em si ilustrativa. A capacidade dos 10% mais ricos no mundo capturar uma elevada fração de rendimento tem por contrapartida em termos de riqueza uma desproporção assinalável entre a capacidade de riqueza do topo, quando confrontada com o peso da base e do grupo de rendimento intermédio (entendido como uma aproximação imperfeita às classes médias).
Outro aspeto importante é como tem evoluído o peso relativo da desigualdade entre países e da desigualdade no interior de cada país.
Sabemos já há algum tempo que o nível de rendimento per capita dos países não nos ajuda em nada a prever a desigualdade, ao contrário do que os obcecados pela chamada curva de KUZNETS o admitiram. Como os autores do relatório bem o assinalam, a desigualdade não é uma inevitabilidade captada antecipadamente pela magia de uma curva, neste caso de uma curva em U invertido, a desigualdade primeiro aumentaria para depois ser concedida a benesse de poder descer. Não é assim. Não é uma inevitabilidade, mas antes o resultado de escolhas políticas e isso é hoje cada vez mais claro. Sobretudo a partir do que se passa nos EUA, o populismo plutocrático só tem uma agenda: reduzir os impostos que pagam os ricos e desmantelar o mais possível os sistemas de proteção social. Tudo o que é normalmente apresentado para justificar essa agenda não passa de treta para ocultar a reprodução de um estado de coisas em matéria de desigualdade.
A desigualdade no interior dos países aumentou substancialmente nas duas últimas décadas, ao passo que a desigualdade global desceu: o rácio entre o rendimento médio dos 10% mais ricos e o rendimento médio dos 50% mais pobres desceu em duas décadas de 50 para 1 para 40 para 1.
As implicações desta evidência são óbvias, mas também esclarecedoras. Ao contrário do que muitos pensam, no plano global, ou seja como se não existissem as realidades nacionais, a desigualdade está a diminuir embora partindo de valores muito elevados. A desigualdade está sim a aumentar no plano de cada país, o que está em linha com o que foi dito há pouco: a desigualdade não é uma inevitabilidade, mas antes o resultado de escolhas políticas. Ora estas escolhas políticas ainda são dominantemente assumidas no quadro das políticas económicas nacionais. Os mais renitentes poderão retorquir que o que se passa no interior de cada país pode ser o reflexo da sua resposta ao enquadramento da economia mundial e da globalização. O argumento não é do ponto de vista geral tonto. Mas em meu entender o que aquela evidência mostra é precisamente o contrário, ou seja a cada vez maior relevância das agendas nacionais, populismo, nacionalismo, receio do outro identificado com o exterior.
Mas convém refrear o sentimento positivo resultante da melhoria da desigualdade a nível mundial. E o relatório fá-lo com propriedade: “As desigualdades globais parecem ser hoje tão elevadas como o eram no pico do imperialismo Ocidental nos inícios do século 20. Na verdade, a fração de rendimento apropriada pela metade mais pobre da população mundial é cerca de metade da registada em 1820, antes de ocorrer a grande divergência entre os países ocidentais e as suas colónias”.
E obviamente o relatório não podia deixar de falar da pandemia e as razões são bem compreensíveis.
Em primeiro lugar, a incidência pandémica terá agravado a tendência para a descida brutal da riqueza líquida pública em detrimento da riqueza líquida privada, ao que a perspetiva do endividamento público não será indiferente.
Depois, a desigualdade entre países foi fortemente influenciada pelo impacto desigual da crise económica associada. Os dois gráficos acima são particularmente esclarecedores. A América Latina, a Europa e a Ásia Oriental e do Sul foram particularmente atingidas, destacando-se aqui a América Latina em que os efeitos combinados em 2020 e em 2021 (projeções FMI) são praticamente da mesma grandeza, o que não acontece nas duas outras zonas, em que 2021 mitiga esses efeitos. A Europa destaca-se na partilha da recessão global em 2020 respondendo por 30% dessa recessão.
Finalmente, o Relatório incorpora elementos muito valiosos sobre o papel da mulher, a relação entre descarbonização e transição climática e desigualdade e problemas de fiscalidade mundial que terão de ficar para um outro post. Ms, globalmente, como previa o Relatório constitui um documento imprescindível para conhecermos o mundo de hoje do ponto de vista do que pode e tem de ser feito sobre o seu estado.
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