(Nas duas últimas semanas sucederam-se a um ritmo impressionante diligências, controvérsias, casos para esquecer, resultados positivos, comentário político, acendimentos pré-eleitorais, tudo isto com foco ou epicentro na justiça portuguesa e, no caso Rendeiro, comparações com justiças alheias, a da África do Sul. A diversidade de referências e a intensidade da sua projeção na comunicação diária são tais que é difícil escapar neste espaço reflexivo à tentação de também por aqui se comentar este frenesim de justiça para todos os gostos. Por muito que se queira insistir no já estafado dito de que ‘à justiça o que é da justiça e à política o que é da política’ parece-me que as duas áreas vão estar indissociavelmente ligadas na batalha eleitoral de janeiro de 2022. E isso basta para lhe dar a atenção devida.)
Começo por recordar duas ideias que assistem à minha revisitação do tema e que de certa maneira subjazem ao comentário de hoje.
Primeiro, sempre achei esdrúxula e um pouco obtusa a ideia de que em Portugal há corpos ou grupos sociais imunes à impureza das tentações e à degenerescência de comportamentos que vão pululando pela sociedade portuguesa. Sem o desejar deliberadamente, nos últimos tempos a realidade tem-me dado razão. Forças Armadas, Forças de Segurança, atores e protagonistas do sistema judicial têm revelado as suas fraquezas, não obviamente globais e atentatórias do bom nome das instituições em si, mas revelando que a tola ideia de projetar todos os males do nosso pequeno mundo na classe política é uma indisfarçável consequência destes tempos de populismo à solta, cada vez mais descontrolado e endémico. Os desvios existem, isso é certo, mas daí a pensar que não são transversais à sociedade portuguesa é uma grande ingenuidade ou hipocrisia.
Segundo, não posso deixar também de recordar que os primeiros sinais de choque entre a classe política e a justiça portuguesa aconteceram no primeiro Governo de José Sócrates (o chamado governo reformista), quando na sequência desse frenesim reformista, alguns benefícios associados à atividade dos juízes foram colocados em causa e suscitaram reações virulentas da classe, aparentemente chocada pelo topete (político) de colocar tais benesses em perspetiva comparativa com outros grupos sociais.
Com base nestes dois pontos de ordem de observação pessoal, que aliás vejo muito pouco referenciados nesta voragem do comentário político em Portugal, penso que a característica negativa da justiça portuguesa mais badalada pela generalidade dos agentes de opinião, a sua lentidão exasperante, é apenas a questão superficial de questões e degenerescências bem mais complexas.
O aspeto em meu entender mais chocante é a propensão para que o exercício da justiça seja concretizado em estreita associação com a questão da condenação no espaço mediático, sem que estejam concretizadas sequer as operações básicas da complexa tramitação judicial, investigação, instrução, acusação e já não falo da entrada em cena da fase em que tudo deveria decidir-se, os tribunais. A relação doentia que tem vindo a ser tecida entre operações do Ministério Público e a comunicação social sedenta de condenação na praça pública, com base nas mais odiosas manifestações do populismo contemporâneo, sensíveis aos preconceitos, aos juízos predeterminados e à roleta do aproveitamento político e à venalidade dos agentes domina a cena atual e engole todos os agentes que queiram permanecer fiéis aos princípios do estado de direito. Claro que no meio disto tudo as personagens públicas que são apanhadas verídica ou supostamente nesta armadilha são mais ou menos simpáticas e odiosas, umas põem-se declaradamente a jeito outras são presas indefesas, tendendo a complicar o equilíbrio dos nossos juízos de cidadãos. Não raras vezes a arrogância de alguns personagens conduz-nos em primeira linha a enveredar por esta tentação de condenar sem investigação consequente, o que simplesmente prova que se trata de más práticas que tendem rapidamente a generalizar-se, mesmo no universo dos que prezam o estado de direito e pretendem resistir ao populismo judicialista. Só nos falta aparecer um destes personagens da justiça a fazer política, assumindo-se como um possível condutor de massas, livrem-nos os Deuses de tal possibilidade.
E como acontece noutras situações da vida, há gente que é estruturalmente tocada na sua honra para sempre, condenada precocemente na praça pública e nos procuradores e depois ilibada em tribunais e os que já se habituaram a este frenesim das condenações precoces, gozam com o assunto e até se dão ao luxo de expressarem a ideia peregrina de que, à primeira prova convincente mostrada, serão eles próprios os primeiros a confessar os seus ilícitos. A malta do futebol destaca-se neste último grupo e o que me parece incompreensível é que os altos dignatários da justiça portuguesa não compreendam que esta via é uma autoestrada para a sua irrelevância social plena.
Compreensivelmente à luz da opinião comum, mas para mim incompreensível, é a grande incapacidade das forças políticas em Portugal para lidar criticamente com esta questão. É da mais elementar justiça considerar que, nos seus termos e modos frequentemente desajeitados e fora de tempo, Rui Rio é dos poucos a ousar emitir juízo sobre essas questões e muitas vezes ameaça mais do que concretiza, mas seguramente que algumas das suas incómodas apreciações deveriam suscitar mais atenção. Quanto ao PS, a sua preocupação legítima de limitar os danos do caso Marquês e a possível condenação de José Sócrates leva-o a uma posição que não é nada contributiva para a melhoria deste estado de coisas. A máxima do ‘à justiça o que é da justiça e à política o que é da política’ tem sentido no quadro da atrás referida limitação de danos, mas tem o particular inconveniente de não atalhar o que neste caso me parece ser o desvio essencial. A transposição da justiça para o plano comunicacional e da praça pública constitui um dos fatores cruciais da aceleração da degenerescência da democracia. Encolher-se para não apanhar os efeitos do ricochete político de uma denúncia mais veemente de toda esta impunidade é perigoso e poderá representar uma inação que historicamente será sempre condenada.
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