(Sabemos que Rui Rio aposta num tempo político que aponta para o início de janeiro de 2022 para apresentação das principais ideias programáticas com que se apresentará sobretudo ao eleitorado com maior mobilidade ao centro. Porém, dadas as suas características pessoais, não se antecipam grandes viragens relativamente ao que tem esparsamente apresentado nestes anos conturbados da sua liderança interna. É isso que explica que alguns jornalistas e analistas se disponham a antecipar as reformas que segundo a sua leitura organizarão a base programática da sua candidatura…)
Um bom exemplo dessa antecipação é a que é proposta pela jornalista Leonete Botelho no Público de 20 de dezembro (link aqui) e que elege sete (este número tem uma atração notável) reformas. Nos parágrafos seguintes, sistematizo a minha visão crítica dessas putativas reformas, sobretudo do ponto de vista do contraponto que estará ao alcance do PS. E já agora, antes de entrar nessa visão crítica, dei comigo a pensar se existe convergência entre quem está neste momento a preparar a campanha do PS e a que esteve junto de Fernando Medina na sua derrota eleitoral face a Moedas. Cheira-me que alguns nomes serão comuns, por exemplo Duarte Cordeiro, o que não me parece um bom augúrio e sinaliza a falta de força e criatividade que tem saído de tão nobres cabeças. Veremos, oxalá me engane …
Mas vamos à tais 7 pressupostas reformas de Rui Rio.
A primeira apontada por Leonete Botelho é a da decentralização e da desconcentração da administração. Muito frontalmente, devo dizer contra as minhas inclinações que dificilmente o PSD não fará melhor do que o PS. E já não vou refugiar-me no descaimento de Ana Abrunhosa, Ministra da Coesão Territorial, quando se saiu com a declaração de que o seu governo é dos mais centralistas que alguma vez governou em Portugal. A falsa impetuosidade tem destas coisas, normalmente dá asneira e pior do que a entrada em falso foi a saída disparatada, provavelmente engendrada após um telefonema mortífero de António Costa, que provavelmente terá dito à Ministra que tivesse em conta que já não era Presidente da Assembleia Municipal da Mêda pelo PSD mas Ministra de um governo PS.
Pois as propostas de descentralização que o PS apresentou e tentou implementar têm origem, estou quase certo, no pensamento do inefável Cabrita. E se houve pensamento errático nesta matéria foi este. Tudo começou com a ideia incauta e não prevenida de propor eleições diretas para as Áreas Metropolitanas, ao arrepio de tudo que é pensamento constitucional relevante em Portugal, dado a interpretação muito restrita que a Constituição portuguesa permite do que deve ser considerado autarquia. A ideia regressou à gaveta e desse pacote inicial vingou a eleição dos Presidentes das CCDR através de colégios eleitorais de autarcas, uma má medida e da qual não se tem sentido qualquer efeito positivo que se veja. Entretanto, os propósitos de descentralização de competências evoluíram em torno de folhas EXCEL de todas as controvérsias, num modelo de aceitação “à la carte” sem qualquer escrutínio das negociações que conduziram à aceitação de alguns e à rejeição de outros. O Ex-Ministro Cabrita ficou ainda ligado a uma ideia que ficou conhecida como a “CIMização” do planeamento territorial, incrementando o poder de concertação das Comunidades Intermunicipais e, por contraponto, reduzindo o das CCDR (contraditório com a legislação atrás referida). A medida não teve uma consequência totalmente acabada, mas na minha perspetiva assentava numa visão deficiente do tecido institucional local, para além de não consagrar as medidas de robustecimento técnico e humano exigido para que as CIM (algumas muito frágeis e de recente constituição) pudessem assumir tal espaço e liderança de concertação. E faltou ainda ao governo PS uma medida que fosse emblemática dos seus reais propósitos descentralizadores. Avançou tontamente pela deslocalização do INFARMED sem preparação prévia e deu obviamente com os burros na água, pondo os cabelos em pé aos “tios e tias” lisboetas que se viam assim arrebanhados pelas gentes do Norte. E na linha de que as medidas-avulso são uma morte lenta para a descentralização, a controvérsia criada pelo Parlamento sobre a deslocalização do Tribunal Constitucional para Coimbra encerrou o assunto. Ficámos conversados.
Por isso, penso que não será difícil ao PSD propor algo de melhor. E, pior do que isso, se excetuarmos José Luís Carneiro que pode ter alguma palavra nesta matéria, não estou a ver por esta altura pensamento no PS capaz de fazer esquecer as trapalhadas descentralizadoras. A matéria que vai acabar por tornar-se o ponto-chave de uma visão mais descentralizadora será a programação plurianual dos Fundos Estruturais para o Portugal 2030, já que do PRR sopraram ventos de centralização, eventualmente impulsionados. O que não é lá muito saudável, pois fazer mergulhar opções políticas profundas como as da descentralização no meio da burocracia comunitária retira transparência e escrutínio ao processo.
A segunda reforma elencada pela jornalista do Público é a da transição climática. Peço imensa desculpa mas nesta matéria apetece dizer “descubra as diferenças”. A agenda comunitária está muito formatada e constitui uma condicionalidade de toda a programação de Fundos Estruturais, incluindo o PRR. Tudo o que Leonete Botelho apresenta como possíveis opções de Rio estão já formatadas há muito. O PS está ao invés bem colocado pois tem a seu favor opções claras já assumidas no sentido da neutralidade carbónica e do grande impulso às renováveis. Conseguiu aparentemente pacificar a questão do hidrogénio, o que é em si importante. Existem, entretanto, duas matérias que irão ser chave para a diferenciação. Uma, matéria em que os governos PS têm falhado redondamente, é a da sensibilidade ambiental e climática do Ministério da Agricultura, uma verdadeira desgraça. A segunda, que é um domínio em aberto, é o da fiscalidade para a transição energética. Ninguém tem pegado nesta questão e sinceramente espero que o programa do PS lhe dê a devida atenção.
No terceiro domínio de reformas, a economia, é crível que Rio possa apresentar algumas novidades. Sinceramente, não acredito que a sua margem de manobra para nesta altura reduzir impostos, a não ser no plano simbólico, seja muito elevada. Para além disso, a impopularidade manifesta da medida de alargar a base fiscal da economia portuguesa, que está a estreitar-se de modo dramático, tornará muito difícil implementar medidas para que mais pessoas possam pagar impostos, pouco mas pagando e aumentando a base fiscal. Admito que o PSD possa intensificar ainda que simbolicamente a descida da carga fiscal para os mais jovens, mas o desejo de aliviar a carga fiscal das empresas teria sempre de ter por contrapartida a tributação do património e da riqueza. Admito por isso que as diferenças irão situar-se na criação de ambientes mais favoráveis às empresas, matéria em que o PS tem sentido dificuldades, em grande medida nos últimos tempos ditadas pela pressão dos seus antigos parceiros de acordo parlamentar que vêm nas empresas a personificação do diabo. Mais solto e sem ter de agradar aos seus parceiros, espero que os estrategas do PS dediquem mais atenção a esta questão e não falta pensamento na social-democracia europeia para agarrar com mais atenção este tema.
O quarto domínio de reforma, a justiça, é aquele que me parece melhor colocado para um grande entendimento PS-PSD e só com essas condições seria possível impor ao corpo judicial a necessidade de maior escrutínio público das suas decisões. Rio é conhecido pela sua frontalidade relativamente à composição dos Conselhos Superiores, o que anuncia determinação nessa área, mas este é domínio por excelência em que são necessárias condições similares a uma revisão constitucional.
A reforma do sistema político é também um tema caro ao PSD e, muito sinceramente, bem mais importante do que a redução do número de deputados, que pode ter algum encanto populista, é a procura de um maior equilíbrio entre a proporcionalidade e a eleição nominal de candidatos. Vejo aqui uma forte limitação, já que tal medida deveria ser acompanhada por uma equivalente reforma da organização partidária a nível espacial. Não me parece que vá haver muito fogo eleitoral nesta matéria.
Em matéria de educação, a sexta reforma indicada por Leonete Botelho, as duas ideias sublinhadas por Rio no Congresso de sábado-domingo passado, a educação na infância e a valorização dos professores (pressupõe-se que da sua carreira), estão um pouco fora do pensamento que esperaria da parte do PSD. Estaria à espera que fosse enunciada a tese de que a valorização do bem público “educação” e do que ele tem de alcançar é compatível com a presença do ensino privado e cooperativo no sistema. Nesta matéria, atendendo à desigualdade que grassa na sociedade e a propensão para a educação privada reproduzir e alargar essa desigualdade, penso que os ventos da história estão do lado do PS. E aqui não existem os seguros privados como na saúde para abrirem uma passadeira vermelha às escolas privadas. Nos tempos que correm, a valorização da escola pública deve ser uma trincheira da esquerda, que deve ser defendida contra tudo e contra todos. Mas para isso a recuperação da confiança dos professores é crucial. Por isso, estou com curiosidade em saber o que é que o PSD tem para oferecer nesta matéria.
Finalmente, a sétima reforma, a saúde, terá no rescaldo pandémico uma enorme centralidade. Como já referi em posts anteriores, principalmente por via dos seguros privados e secundariamente por via da ADSE, a existência de um sistema de hospitais privados não pode mais ser ignorado. E existem aqui nuances que será difícil transpor para o combate político com serenidade e esclarecimento. Uma coisa é defender o sistema privado de saúde como meio acelerado de provocar a destruição do sistema público, outra coisa bem diferente é defender a qualidade e resiliência deste último não ignorando a presença do sistema privado. Mas, ao contrário do que pensam o PCP e o Bloco, já não é mais possível discutir no abstrato a questão público-privado. Creio que esta matéria é das que vai exigir um maior escrutínio eleitoral e julgo que a questão dos recursos humanos nos hospitais públicos vai ser determinante na discussão.
Em resumo, pressupondo que estas vão ser as sete matérias mais relevantes do escrutínio eleitoral, que não acredito que sejam, não nos podemos queixar de falta de espaços de diferença. Desejaria que o PS estivesse mais agressivo na defesa das suas posições e já agora insistir em equipa que perde pode ser desastroso. Aprender com os erros na campanha de Fernando Medina talvez ajude.
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