(Por estes tempos não abunda o pensamento lúcido sobre a governança mundial. É uma lástima porque estamos no centro de um turbilhão e é nestas ocasiões que precisamos de guias de reflexão e de vozes com capacidade de influenciar a política internacional. Mary Kaldor é uma dessas personalidades, com ligação à London School of Economics and Political Science e ao European Council on Foreign Relations, professora emérita nessa grande Escola britânica de Governança Mundial. Para além de tudo o mais, Mary Kaldor é filha do saudoso Nicholas Kaldor um dos grandes autores keynesianos do crescimento económico.
Nos últimos tempos, a sua escrita e a sua voz têm emergido como uma importante fonte de pensamento crítico contra o definhamento da afirmação da Europa e da União Europeia na governação mundial, denunciando por essa via a carência de equilíbrio que isso traz ao mundo e antecipando o que de gravoso isso traz também à defesa intransigente dos valores constitutivos da União - paz, direitos humanos, democracia, solidariedade e Estado de direito.
Em setembro deste ano, Kaldor publicou no âmbito do European Council on Foreign Relations (ecfr.eu) (link aqui) um corajoso artigo sobre a perda de oportunidade que a Europa tinha experimentado com a decisão de não prosseguir no Afeganistão depois da trágica e improvisada retirada americana. A sua argumentação passa nesse artigo por mostrar que isso estava ao alcance das autoridades europeias e que tal decisão poderia ter gerado um boost de confiança na força das instituições europeias. Como Mary Kaldor bem o sublinha, as posições da União e dos EUA relativamente ao Afeganistão sempre se distinguiram, com os Europeus apostados na capacitação de uma nação, logo com exigências de negociação bem mais duras e complexas, enquanto os Americanos investiram na capacitação totalmente falhada das forças armadas governamentais afegãs. Essa capacitação ruiu como um baralho de cartas à mínima ameaça que os talibãs estavam aí de novo, levando muita gente a suspeitar que tipo de capacitação teria sido realizada e dos processos de corrupção que terão estado no terreno. Tudo isso acabou por não passar de uma fugaz oportunidade, o eixo franco-alemão não se entendeu e circularam rumores diplomáticos que os Alemães teriam conseguido algum compromisso americano de tropas em território alemão para dissuadir as pretensões russas em relação á Ucrânia.
Por estes dias, Mary Kaldor publicou um artigo para o El País (link aqui) onde denuncia o jogo perigoso que Putin e o seu aliado bielorusso Lukashenko terão travado aparentemente com êxito para ficar mais evidente a incapacidade europeia de simultaneamente defender os valores comuns que conduziram à sua constituição e resolver pressão migratória, neste caso a partir da chantagem da Bielorússia. Hoje, aparentemente as cerca de 2.000 pessoas e algo mais que conseguiram sobreviveram ao martírio daqueles dias perante o arame farpado que as separavam da entrada em território europeu estarão com destino suspenso noutro conjunto de instalações de que se desconhecem as condições. A pressão ficou suspensa mas segundo Kaldor o objetivo de transformar migrantes em arma de arremesso destinava-se a pôr à prova as autoridades europeias e a favorecer o endurecimento da política anti-migratória. E, de facto, tem sido assim recorrentemente. A Professora britânica mostra que é isso o que é revelado pela sucessão trágica de pressões similares: Lampedusa (2004, primeiro e depois 2011), a crise da fronteira greco-turca (2010), o êxodo sírio (2015 e 2016) e agora a crise da fronteira entre a Bielorússia e a Polónia e a Lituânia e a crise do Canal da Mancha com um bobo da corte e um conjunto de ministros conservadores racistas e incompetentes a acelerar a combustão e a apanhar as canas de um mal-amanhado acordo de Brexit. Invenção de soluções mais ou menos estapafúrdias (como o acordo de Merkel com Erdogan) e sobretudo endurecimento progressivo da posição europeia contra as migrações, sem qualquer comiseração ou compaixão pela irreversibilidade das situações na origem, tem sido a consequência objetiva de todo este processo.
Não podemos ignorar que a estratégia de Putin e seus aliados é a de transformar os populismos europeus em cavalos de troia das suas próprias ambições de desvalorizar o poder de influência da União na geopolítica atual. Ora, toda a investigação tem demonstrado como as sucessivas crises migratórias têm estado sempre associadas ao favorecimento eleitoral do populismo, não ignorando que a massa de migrantes envolvidos nessas crises esteve sempre aquém da dinâmica passada de entrada de residentes de outros continentes no território da União.
Este jogo macabro ganha-se quando os políticos não xenófobos começam a usar argumentos e linguagem dos populistas que o são. Os 1,1 milhões de postos de trabalho não ocupados no Reino Unido são um indicador objetivo deste frenesim anti-migratório, questão largamente agravada pela desconexa, errática, contraditória e corrupta, começam a dizer alguns, gestão da pandemia do governo conservador em relação aos estrangeiros, de que também fala hoje Clara Ferreira Alves numa das suas mais contundentes crónicas[1]. E, como diz Kaldor, até o governo polaco, que constitui em si uma ameaça aos valores comuns da Europa, saiu reforçado desta crise.
Não podemos deixar de começar a pensar quanto tempo podem as autoridades europeias continuar a protagonizar um processo de negação objetiva dos seus valores comuns enquanto adaptam a voz das suas decisões, tal como imitador barato e de circunstância, às correntes do populismo anti-migratório?
[1] Convido-vos a comparar o pensamento de Clara Ferreira Alves quando se refere a questões desta natureza, onde predomina a sua visão cosmopolita e sadiamente liberal (que não depende do seu posicionamento no país) e a questões nacionais em que é fundamental compreender o seu posicionamento cultural em relação ao país que temos e ao seu território. Tudo o que fica fora do raio de influência de Lisboa é visto com um arrepiante elitismo da capital, tal como o é por exemplo a sua análise do papel de Rui Rio e, como sabem, não está aqui um defensor do político nortenho.
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