domingo, 5 de dezembro de 2021

A LÍNGUA PORTUGUESA VISTA DO EXTERIOR


(Se juntarmos na equação o Mar, a língua portuguesa é conjuntamente com este último o par de recursos nacionais para os quais temos manifestado uma incapacidade doentia de valorização ao longo do tempo, incluindo o tempo da democracia. E se pensarmos que a incapacidade de valorização de recursos é um cruel indicador de incapacidade de desenvolvimento e de condução do nosso destino coletivo, esta questão deveria ocupar um lugar central no modo como as forças políticas nos apresentam as suas ideias e projetos para a governação. Neste caso, é alguém com uma visão de fora do país, mas dele próximo, que me conduziu a este post. Quanto ao Mar poderá ser tema de posts futuros, embora me pareça que mais à esquerda ou mais à direita a escolha dos governantes que têm assumido a pasta é ela própria um grande indicador da incapacidade de valorizar o recurso, que começa por não escolher bem quem o poderia comandar a nível político, mas que se combina também com uma complexa atribuição de tutelas.)

A referência que trago hoje ao vosso conhecimento sobre o amor à língua portuguesa é a de um artigo de Miguel-Anxo Murado no VOZ DE GALICIA de hoje (link aqui). Curiosamente, o cronista penitencia-se pelo facto de a um galego não ficar bem insistir no seu amor à língua portuguesa: “(…) para um galego, falar da beleza desse idioma é como uma amiga minha que passava o dia a dizer quão bela era a sua irmã”. De facto, sabemos como o longo processo de afirmação da língua galega, só possível em termos de resultados pela presença de um Governo Regional de forte expressão e já longa estabilidade política, é indissociável da proximidade e cumplicidade da língua galega com o português. Não tenho nos últimos tempos seguido essa questão, mas nas minhas andanças passadas pela cooperação entre o Norte e a Galiza privei com alguns elementos de um grupo de “lusistas” que se destacava entre os defensores da pureza da língua galega.

Claro que nem sempre se torna fácil a convivência entre o galego e o português, sobretudo porque uma parte da população portuguesa, sobretudo a mais raiana, já está fortemente habituada ao castelhano que lhe entra diariamente pela televisão, muitas vezes mais variada e com melhor sinal do que a nossa TV digital, a que é vista pelos não assinantes de cabo. Assisti a algumas deceções por parte dos amigos galegos, quando se esforçavam por falar em galego e da parte de cá se notava alguma dificuldade em seguir o discurso, por falta de hábito de escuta e maior habituação ao castelhano.

Mas a proximidade entre as duas línguas sempre foi um dos mais poderosos fatores de condução da cooperação entre as duas Regiões, e o próprio Fraga Iribarne bem cedo o compreendeu, podendo mesmo dizer-se que, independentemente do conteúdo mais estratégico que se pretendeu dar à cooperação (e investi muito trabalho nessa tarefa), a verdade é que língua e proximidade cultural são talvez os dois vetores mais perenes da cooperação norte-galaica.

Por isso, ouvir um galego como o cronista da VOZ pronunciar-se sobre a beleza da língua portuguesa pode não ser um testemunho tão de bandeira como quando se ouve um francês, inglês ou americano pronunciar-se sobre o português, induzido por exemplo pela proximidade a vultos como Fernando Pessoa. Mas sabe bem ouvir e ler essas palavras, sobretudo quando a perspetiva de análise de Miguel-Anxo Murado é a da linguagem do tempo pandémico.

Tenham em conta esta preciosidade:

“(…) Portugal acaba de declarar o estado de calamidade. Deixando de lado a má noticia em si, distraio-me pensando, uma vez mais, no talento do povo português para as palavras. Nem emergência nem alarme. Com efeito, o que nos caiu em cima é o que os nossos amigos portugueses dizem: uma calamidade pura e simples. E inclusivamente é mais correto etimologicamente, porque calamidade em latim significa, entre outras coisas, uma praga. (…)

Estado de calamidade. A expressão em si mesma, por desgraça, não contribuirá em nada para aliviar a preocupação e o sofrimento dos portugueses, nem o nosso. As palavras não são mágicas e não podem mudar a realidade, ainda que por vezes haja essa impressão. Porque a realidade, essa sim, faz mudar as palavras. Mas ao menos podem-nos proporcionar um prazer modesto, o de saber que acertámos com o nome da coisa, que temos chamado as coisas pelo seu nome”.

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