domingo, 26 de dezembro de 2021

AS TRIBOS DA INFLAÇÃO

 


(Já perceberam há muito, e este blogue tem-se esforçado para contribuir para isso, os economistas, particularmente os macroeconomistas, são uma tribo em permanente confronto, com longos períodos de superioridade de umas sobre outras, a que se juntam por vezes outros períodos de maior alternância de notoriedade e influência. O ano de 2021 trouxe-nos essencialmente dois temas para a renovação desse confronto entre tribos. Primeiro, foi o grande debate da gestão macroeconómica da crise pandémica, em que a tribo favorável à intervenção pública rápida e massiva ganhou em toda a linha, em termos bem mais claros do que o observado na resposta à Grande Recessão de 2008. Segundo, praticamente em cima do último trimestre do ano, o tema da inflação regressou e com ele de novo o regresso da divisão entre tribos. É sobre este último tema que me debruçarei hoje, enquanto se espera o resultado de um teste PCR que nos pode trazer os netos de Lisboa ao encontro dos do Porto…)

Há que dizer, em primeiro lugar, e faço-o com alguma tristeza pelo facto do debate na Europa estar a anos-luz do que os EUA nos oferece, que a principal riqueza do debate está no comportamento da inflação nos EUA, até porque comparativamente o possível problema tem maior expressão na economia americana do que na Europa, pelo menos para já. Se houver espaço para uma crónica compatível com os escritos deste blogue prometo que uma descida à nossa realidade, nacional e europeia, será ensaiada. Ou noutro post, se for caso disso.

Se quisermos ser rigorosos, este embate entre duas tribos, a que chamaremos respetivamente “tribo do transitório” e “tribo do permanente” (invocando aqui uma distinção hoje muito comum entre as duas visões em confronto sobre a inflação) tem origem na posição que Lawrence Summers divulgou sobre o grande estímulo económico e fiscal que a administração Biden lançou para combater a crise pandémica quando tomou o poder. Creio que todos os leitores deste blogue já anteciparam o gozo que deve dar a um personagem como Summers quando ele marca o debate económico com alguns dos seus aparecimentos, seja no seu próprio blogue (que tem estado em hibernação), no Washington Post onde escreve regularmente, no Financial Times onde aparece mais ocasionalmente e em toda a série de entrevistas e podcasts a que se dedica quando quer marcar a opinião dos mercados e é disso que estamos a falar.

O argumento de Summers era na altura essencialmente o seguinte[1]: dada a impressionante magnitude do estímulo de Biden, corria-se o risco dessa injeção de investimento ser bastante mais elevado do que o “output gap” então apresentado pela economia americana. O “output gap” é a diferença entre o produto máximo potencial de uma economia e o produto que corresponde à utilização atual da capacidade produtiva e dos recursos existentes na economia. Ora o que Summers referia é que o excesso de estímulo iria projetar o produto americano para níveis incomportáveis com o produto potencial e isso traria consequências potencialmente inflacionistas. Convém aqui recordar que, ao contrário do que foi adotado na Europa e em Portugal, nos EUA a intervenção pública na pandemia preferiu não proteger as empresas, deixá-las encerrar pela crise observada e ajudar sim o rendimento das pessoas atingidas por essa destruição de empresas e de emprego.

A ambição da crítica de Summers, como Democrata que é, não era obviamente atingir politicamente a administração Biden, mas antes influenciar a decisão do FED[2], que começou como é conhecido a encarar a inflação como temporária, engrossando assim as hostes da “tribo do temporário”. Em artigo de 15 de novembro no Washington Post (link aqui), Summers procura anular os cinco argumentos que o atual Governador do FED, Jerome H. Powell apresentou no célebre seminário de Jackson Hole para justificar a sua inclusão na “tribo do temporário”:

  • A subida de preços não estaria já limitada a um pequeno conjunto de setores, com destaque para a energia;
  • Os aumentos de preços nos carros usados, bens de consumo duradouros e habitação estão longe de estar controlados como Powell sugeriu;
  • As vagas de empregos e as taxas de substituição de um emprego por outro estão em níveis muito elevados, contrariando a hipótese de Powell segundo a qual a evidência de que os aumentos salariais iriam gerar pressões inflacionistas era reduzida;
  • As expectativas de inflação futura estão em crescendo;
  • O trend deflacionário global pressuposto por Powell está obviamente a dissipar-se e o preço do petróleo não dá sinais de que vá descer.

Desde esta investida de Summers, datada de meados de novembro, a posição do FED alterou-se (nunca saberemos se por esta influência ou se simplesmente pela reconsideração de evidências). A compra de títulos de dívida será suspensa (matéria em que há acordo entre as duas tribos) e preanuncia-se a subida da taxa de juro de referência para 2022. Ou seja, o FED dá sinais de abandonar a “tribo do transitório”, embora não declare inequivocamente a sua passagem para a tribo do “permanente”.

A leitura deste confronto entre as tribos da inflação animou um pouco o debate em fins de 2021, interrompendo um período em que a unanimidade sobre a necessidade do estímulo público para controlar os efeitos económicos da pandemia. Na minha modesta leitura, há duas matérias que podem fazer pender a contenda para lados diferentes.

A primeira matéria, que poderá reforçar a leitura da transitoriedade da inflação, prende-se com os reais efeitos e sobretudo a duração da disrupção observada nas cadeias de valor globais (supply chain). Não esqueçamos que houve aqui uma espécie de tempestade perfeita: sérios problemas logísticos, como os portuários, mas também nos transportes de mercadorias, que se juntaram à crise dos chips, com importantes efeitos por exemplo na indústria automóvel e daí o forte aumento da procura de viaturas usadas. A disrupção das cadeias de valor globais, se bem que possa ser prolongada pelo efeito da nova variante Omícron, com reflexos por exemplo no transporte aéreo, não parece que vá reforçar a componente da inflação permanente. É óbvio que pode ser completada com fenómenos de escassez de mão de obra, que estão a ocorrer com nitidez em países como em Portugal e aos quais não temos dada a devida atenção (basta apenas falar com alguém que esteja a construir ou renovar uma habitação ou com algum construtor civil). Mas, de qualquer modo, as disrupções de oferta tenderão a ser resolvidas e por isso a subsistir a necessidade de atenção à procura.

A segunda matéria, a observar-se, pende claramente para a “tribo do permanente”. Trata-se de invocar as expectativas inflacionárias que os agentes económicos tenderão a alimentar quanto à inflação e sobretudo a capacidade dos bancos centrais de demonstrar inequivocamente a sua vontade de controlar a inflação, fazendo o que for necessário para o enraizar nas expectativas desses mesmos agentes económicos. Esta é a posição que tem vindo a ser defendida pelo nosso economista Ricardo Reis, hoje na London School of Economics e largamente ouvido na imprensa internacional (link aqui). O problema consiste na possibilidade dos agentes económicos, consumidores e empresários, anteciparem que a subida de preços será permanente e isso é realmente uma condição que tende a induzir uma efetiva subida de preços, já não agora limitada a um conjunto restrito de setores e para lá das disrupções da oferta global. Ninguém até ao momento forneceu evidência bastante e significativa para demonstrar a presença de expectativas inflacionárias. Krugman que alinha claramente na “tribo do temporário” pesquisou (link aqui) evidências de antecipações futuras de alguns observatórios americanos e não encontrou evidência de que essas expectativas estejam em formação. O problema é que a identificação empírica de expectativas inflacionárias não está resolvida e a sua formação pode rapidamente ultrapassar todos os campos possíveis para a sua antecipação.

Subjacente a este combate entre as duas tribos, está uma conquista dos últimos 10 anos que seria trágico ver destruída. Nos bancos centrais foi ganhando espaço a ideia de que o combate à inflação não poderia dominar a política monetária e que seria fundamental incluir no seu âmbito de atuação a defesa de um mercado de trabalho saudável.

E por isso a grande questão que se coloca aos bancos centrais e particularmente ao FED é se a política monetária deve ser desde já restringida, provocando com a subida das taxas de juro seja uma estagflação (subida de preços com problemas de oferta e desemprego) como o parece admitir Lawrence Summers, ou mesmo uma recessão, interrompendo assim abruptamente a expansão da economia.

E por isso me parece que Matthew Klein (https://theovershoot.co/p/the-case-for-patience-on-inflation) tem razão quando defende que a interpretação do atual comportamento dos preços requer paciência e nervos de aço. Até porque não há ninguém que seja capaz de quantificar temporalmente o que devemos entender por temporário.

A questão no que diz respeito à área de jurisdição do BCE parecer ser menos intensa e a variação de preços mais significativa está ainda limitada a um conjunto reduzido de setores (ver gráfico que abre este post).


No último Boletim Económico do BCE poderia ler-se (link aqui):

A recuperação continua a depender da evolução da pandemia edo progresso adicional obtido com a vacinação. O Conselho de Governadores avalia os riscos da previsão económica como equilibrada em geral. A curto prazo, os constrangimentos de oferta e os preços de energia crescentes constituem os principais riscos para o rumo da recuperação e para as perspetivas sobre a inflação. Se as restrições de oferta e os preços de energia mais altos persistirem durante mais tempo, isso pode tornar a recuperação mais lenta. Ao mesmo tempo, se os bloqueios de oferta se transmitirem em aumentos de salários superiores aos previstos ou se a economia regressar mais rapidamente à capacidade plena, então as pressões de preços serão mais fortes. Contudo, a atividade económica pode mais do que compensar as expectativas correntes se os consumidores ficarem mais confiantes e poupar menos do que o esperado.

Ou seja, aparentemente Madame Lagarde parece cultivar a opinião de Matthew Klein – a paciência vigilante. E acho que tem razão. É sempre mais fácil atalhar a tempo uma expansão em aquecimento do que inverter uma recessão. Isso a história ensina-nos e as tribos que se lixem.



[1] Não esqueçamos que Summers foi acusado de ter sido o responsável pelo facto do estímulo económico de Obama na Grande Recessão de 2008 não ter sido suficientemente elevado.

[2] Uma interpretação marota relembraria aqui que Summers foi candidato preterido para a Governação do FED em detrimento de Janet Yellen, que precedeu Jerome H. Powell.

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