quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

A CIMEIRA DAS DEMOCRACIAS

 


(A administração Biden está claramente a perder força, e não me venham dizer que desta vez é de novo culpa dos Democratas mais radicais, num contexto em que não é fácil identificar as razões que explicam essa perda de fôlego. Estou mais inclinado a pensar que se trata do peso das contradições em que o modelo americano e a sua presença no mundo da geoestratégia e da geopolítica, combinado com o conservadorismo estrutural de uma grande parte da sociedade americana, pois outro contexto não explicaria a ascensão e não desaparecimento de Trump. Pois é esta Administração que promoveu o acordo AUKUS com o Reino Unido e a Austrália e a mesma que organiza agora a chamada Cimeira das Democracias. Vale a pena por isso analisar a bondade da iniciativa e há boas companhias para o fazer.

A questão central que uma crítica diligente e rigorosa da ideia da Cimeira deve colocar é a de saber se os argumentos formais apresentados para justificar a iniciativa correspondem ao verdadeiro racional que a promove ou se, pelo contrário, tem objetivos ocultos, afinal não tão ocultos como isso e que estão ao alcance de qualquer um que pense minimamente o lugar dos EUA no mundo em transformação acelerada.

Como Teresa de Sousa nos lembra no seu artigo de ontem no Público, “Uma aposta arriscada” (link aqui), é correto recordar que Biden falou dessa iniciativa na sua campanha eleitoral. O que significa que foi pelo menos pensada e que o convite dirigido aos 110 países representados está associado a algo que foi tornado público com alguma antecipação e que fez parte da paleta de ideias e propostas com que Biden se apresentou aos americanos e pediu a sua confiança para afastar Trump do poder. Tudo isso é verdade, mas à medida que se pesca no universo dos 110 países convidados e se contrapõe essa lista aos não convidados é pelo questionável que tipo de melhorias de democracia se pode esperar em países como (referenciados por Teresa de Sousa) por exemplo o Paquistão, as Filipinas, o Iraque e Angola. Pode perguntar-se assim se há alguma avaliação do potencial de recuperação democrática para justificar o universo dos 110 e subjacente à decisão da administração americana.

Obviamente que o não convite à China e à Rússia tem significado, ninguém contestando que se trata de dois casos em que é necessária uma elasticidade dos diabos para esperar naqueles dois colossos uma melhoria das instituições democráticas que possam ser acolhidas por um critério ainda que amplo dos requisitos para oficializar. Mas o problema complica-se quando vemos entre os 110 outros casos em que será também necessária uma bondosa elasticidade de critérios para admitir matéria de melhorias.

É sob esta interrogação que Branko Milanovic (link aqui) se questiona qual será a verdadeira essência da Cimeira. E acho que ele tem razão quando afirma que não é o mesmo negociar entre grupos com valores essenciais diferentes ou entre grupos com interesses distintos. Se a iniciativa de Biden visa agrupar os países que estão mais próximos de poder aderir ou seguir os valores da democracia e da governação americanas, entendidos como compatíveis com a Carta dos Direitos Humanos das Nações Unidas, isso terá obviamente um significado bem distinto de os agrupar em função de determinados interesses.

Ora, tudo parece conduzir-nos à ideia de que, embora no discurso formal a questão do modelo de democracia seja acenada como o racional da iniciativa, a exclusão da Rússia e da China corresponde a considerações de geopolítica, designadamente no que neste momento se observa na Ásia oriental e onde a China pretende posicionar-se como potência organizadora daquele espaço. Questão mais complexa e que nesta primeira reflexa não me sinto em condições de aprofundar é a posição da Rússia neste não convite. Neste caso, parece-me que o choque está mais situado na rota de colisão provocado pela posição agressiva dos Russos em relação à Ucrânia e a certas potenciais adesões à NATO que vão de contra algumas linhas vermelhas estabelecidas pelo Kremlin.

Considerando que, no interior da sociedade e da política americanas prosperam ideias populistas incompatíveis com os melhores cânones da democracia e que entre os 110 convidados estão também representantes modernos de subjugação da democracia política, a Cimeira parece ter uma Agenda implícita que não augura nada de bom para a redução das incertezas e para a garantia de que as ameaças que imperam sobre largas franjas da população mundial possam ser aliviadas.

O mundo incerto que vivemos se quer decididamente evitar a Guerra terá de evoluir para outros modelos de negociação num quadro mais global, no âmbito do qual a defesa da democracia como a irredutível e única solução para integrar todos os interesses políticos (menos os que estão apostados em destrui-la).

Só a mais longo prazo perceberemos se a Cimeira poderá ser um Marco de qualquer coisa de relevante ou se, pelo contrário, irá perder-se na história das Cimeiras falhadas e sem consequências enquanto Cimeira virtual, tecnologicamente falando, mas também virtual do ponto de vista dos seus efeitos.

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