O livro já data do final do ano passado, mas só acedi a ele no Verão deste ano fazendo dele uma companhia inseparável daqueles tempos de sol e praia. Absolutamente magistral e esmagador na sua argumentação sólida, eloquente e fina, o livro tem a assinatura de duas eminentes figuras da elite britânica de policy-makers em matéria económica (John Kay, um reputado consultor político e economista industrial que foi longamente colaborador assíduo do “Financial Times”, e Mervyn King, um professor da LSE e ex-governador do Banco de Inglaterra) corresponde a um verdadeiro tratado de conhecimento acumulado e devidamente armazenado.
Lendo várias das inúmeras recensões feitas a seu propósito, podemos encontrar diversas formas pertinentes (embora necessariamente limitadas) de avaliar o seu escopo e alcance. Julgo que as referências seguintes bastarão para servir de aperitivo àquilo que o leitor tem pela frente quando se depara com as mais de 500 páginas da obra: (i) Joseph C. Sternberg escreveu no “The Wall Street Journal” que “os economistas reivindicaram o direito de abordar muitas questões fora da órbita da sua disciplina” e que “este livro lembra-nos quão inapropriado isso é”; (ii) Martin Sandbu referiu no “Financial Times” tratar-se de “uma retórica eloquente contra a falsa precisão dos modelos matemáticos”; (iii) William Forbes sublinhou na sua página da londrina “Kingston University” que aqueles prestigiados autores “juntaram-se para expressar a sua compartilhada consternação relativamente a quanto a análise económica/debate político estão enclausurados” e logo acrescentou que “eles se concentram, especificamente, num alargamento da análise do risco para além do modo como ele é capturado pela utilidade esperada, de fora do ‘pequeno mundo’ da roda da roleta para o mundo maior dos problemas económico-sociais”; (iv) Seth B. Sacher explicitou em “The Antitrust Source” que o livro “oferece simultaneamente argumentos provocatórios a respeito de modelos [os modelos económicos ignoram demasiadas vezes a distinção crítica entre risco e incerteza], bem como pensamentos mais mundanos que devem sempre ser recordados a qualquer practitioner”; (v) Paul Ormerod acrescentou em “The Open-Access” que o livro “fornece evidência empírica no sentido de sugerir que, para descrever o comportamento no mundo moderno, a racionalidade econômica é aplicável num número decrescente de situações”.
Mas não resisto a mais algum detalhe. Sobre, por exemplo, o modo como os autores sinteticamente apresentam o livro no respetivo prefácio: “É um livro sobre como as pessoas reais fazem escolhas num mundo radicalmente incerto em que as probabilidades não podem ser associadas em termos significativos a futuros alternativos”. Ou sobre as três principais proposições que concetualmente regem o trabalho de Kay e King: a não estacionaridade do mundo e dos sistemas económicos, de negócios e financeiros (“amanhã não é apenas uma extrapolação de hoje” porque o mundo “não é governado por leis científicas imutáveis”); o facto de os indivíduos não poderem otimizar nem realmente otimizarem (daí a distinção entre “racionalidade axiomática” e “racionalidade evolutiva”, na medida em que “as famílias reais, as empresas reais e os governos reais não otimizam mas lidam com, ou seja, tomam decisões incrementalmente”); o facto adicional de os homens serem animais sociais e, portanto, de a comunicação desempenhar um papel importante no processo de tomada de decisão (o que leva à invocação de “narrativas de referência” sobre quem somos, como vivemos e o que devemos fazer enquanto orientação das nossas escolhas como comunidade ou como indivíduos no interior de comunidades mais alargadas).
Ou, ainda, sobre algumas curiosidades avulsas que foram deixando mencionadas ao longo do texto: (i) “imperadores, exploradores e presidentes tomam decisões sem uma completa compreensão da situação que se lhes depara ou dos efeitos das suas ações; e nós também o temos de fazer”; (ii) “a incerteza [radical] é o resultado do nosso incompleto conhecimento do mundo ou sobre a conexão entre as nossas presentes ações e os seus futuros resultados”; (iii) “os verdadeiros ‘cisnes negros’ são estados do mundo a que não podemos atribuir probabilidades porque são estados que não podemos conceber”; (iv) “a crença em que o raciocínio matemático é mais rigoroso e preciso do que o raciocínio verbal, que é tido por suscetível à vagueza e ambiguidade, é penetrante na economia” (o que remete para a célebre mathiness de Paul Romer); (v) “os números são essenciais à análise económica” mas “a interpretação económica é sempre o produto de um contexto social ou teoria” (evolution is smarter than economists); (vi) “Keynes observou que o espírito empresarial morre quando as expectativas matemáticas se impõem”, já que o comportamento de tomada de risco é a elemento central de dinâmica de uma sociedade capitalista; (vii) “a inteligência artificial oferece a perspetiva de formas ainda mais rápidas de resolver puzzles complexos mas não resolverá mistérios”; (viii) “o sucesso inovador de uma economia de mercado não resulta de os indivíduos ou empresas tentarem ‘otimizar’ mas dos seus esforços por tentativa e erro no sentido de navegarem um mundo de incerteza radical”; (ix) “ a produtividade tem sido descrita como a medida da nossa ignorância”; (x) “a cooperação interdisciplinar não é equivalente a imperialismo económico”, sendo que “as pessoas que só sabem economia não sabem muito sobre economia”.
E por aí fora, tantos e tantos outros apontamentos de enorme pertinência e espessura ressaltam como merecedores de leitura séria e reflexão derivada, como aquele associado à improcedente procura de um mapa perfeito do mundo (Jorge Luis Borges) e às sábias palavras de um filósofo polaco (the map is not the territory), tudo para elucidar especificamente que “um mapa, ou um modelo, é necessariamente uma simplificação”; ou aquele outro associado à ideia preponderante de que “sem incerteza não poderia haver evolução” porque “no contexto de uma narrativa de referência estável [quando indivíduos criativos assentam na inteligência coletiva, aperfeiçoam as suas ideias em comunicação com outros e operam num enquadramento permissivo de estabilidade], a incerteza deve ser mais bem-vinda do que temida”.
E assim encerram os dois autores esta sua obra notável: “Tolstoi descreveu aquela batalha [Borodino] em vinte capítulos de uma das maiores narrativas da literatura, na qual factos e ficção se entrelaçam. Ele compreendeu a incerteza radical. Nós vemos através de um vidro, escuro. E comunicamos entre nós através de narrativas, não probabilidades, para descrever o nosso infinitamente fascinante mundo”. Recomendo muito vivamente que não percam!
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