sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

A FALAR DE LÍNGUAS …

 

(Múltiplos poderiam ser os temas para acabar com este ainda viral 2021 mas um artigo sugestivo de Manuel Vilas no El País transforma-se subitamente num tema possível, completando reflexão de um post anterior. Há dias trouxe aqui o complexo tema da relação entre língua e nacionalismo, pois este artigo de Vilas completa-o na perspetiva de saber se é possível escapar ao determinismo de uma outra relação – dimensão económica do país e expressão internacional de uma língua. Tudo isto porque a Espanha e a literatura espanhola serão em 2022 convidadas oficiais da Feira do Livro de Frankfurt…)

Em tudo havia beleza (Ordesa)” e “E, de repente a alegria” (Alfaguara), particularmente o primeiro, são duas recordações inolvidáveis da prosa de Manuel Vilas, picos de uma sensibilidade que é difícil manter ao nível elevado daquelas obras (estou curioso se o recente Los besos marcará já ou não uma trajetória decrescente). Por isso, aquelas obras e o infinito prazer da sua leitura são cartões de visita suficientemente convincentes para ler qualquer coisa escrita pelo autor espanhol que me apareça à frente. E nesse registo o El País continua a ser um jornal de referência. A literatura espanhola está nele sempre profundamente representada e creio mesmo que o jornal tem contribuído fortemente para a identificação do público com as obras dos autores, como se viu, aliás, no funeral da saudosa Almudena Grandes em que leitores anónimos se apresentavam com os livros da autora no seu respeito final (não é esta a expressão máxima da relação entre quem escreve e quem lê?).

A crónica de Vilas (link aqui) foca-se no efeito que a dimensão económica do país exerce como fator condicionador da expressividade e notoriedade de uma língua, a propósito da sua recente experiência pessoal de transferência de testemunho do Canadá para Espanha como países e literatura convidados da Feira do Livro de Frankfurt. Não posso deixar de pensar que a reflexão é produzida apesar da Espanha não ser propriamente uma economia pequena e a América Latina proporcionar uma notoriedade à língua espanhola que transcende em muito os limites geográficos do país nosso vizinho.

Um excerto:

Não podemos permitir que a ainda insuficiente relevância política e económica da Espanha no contexto internacional se repercuta na visibilidade da literatura espanhola. Temos de inventar algo para sair desse círculo vicioso. Os países poderosos criam literaturas poderosas. E essa é a incómoda e quase grosseira questão: como criar uma literatura importante a partir de um país pouco importante. As literaturas são espelhos dos poderes económicos, industriais e políticos dos países que as produzem. Obviamente, não é uma lei universal, mas tende frequentemente a funcionar assim. Basta ver para o verificar como a literatura em língua inglesa arrasa em todos os continentes. Um escritor em língua inglesa passeia-se pelo mundo como se este fosse monolingue, e isso é assim porque por detrás da língua inglesa não são propriamente Shakespeare e Faulkner que o alimentam, mas antes um império político, económico, industrial e tecnológico que continua a assombrar o mundo. Por vezes, nos festivais internacionais sinto-me fascinado, com olhar de aldeão, vendo os escritores em língua inglesa. Toda a gente quer falar-lhes em inglês, para que vejam que estão do lado da verdade histórica, do lado da língua certa. O grau de confiança na vida que os olhos de um escritor em língua inglesa expressam é mais um prodígio político do que literário.”

A lamentação de Vilas poderia ser mutatis mutandis a de um qualquer escritor em língua portuguesa e diria mesmo de qualquer cientista que tem de ultrapassar a barreira da língua e da realidade empírica do seu país para publicar em qualquer revista com expressão nos rankings internacionais. Há dias na Grande Entrevista de Vítor Gonçalves na RTP 3, tivemos um personagem fascinante com poder de comunicação brilhante, o Professor e químico Nuno Maulide, professor catedrático na Universidade de Viena. Não custa muito imaginar o esforço notável que o químico afro-português (mãe São Tomense e Pai Moçambicano, ambos médicos) terá realizado para ultrapassar a barreira de país, exemplarmente descrito pelo entrevistado quando recorda o momento em que de modo informal apresentou o seu poster na conferência internacional ao Professor do Instituto Max Planck que o haveria de projetar na alta-roda da química mundial.

Por tudo isto, como Portugueses não temos valorado de modo suficiente o papel de estrangeiros que se apaixonam pelo português ou por alguns escritores em língua portuguesa. Lembro-me por exemplo de Antonio Tabuchi, de Richard Zenith (cuja biografia de Fernando Pessoa em português se espera ansiosamente para 2022), Alberto Manguel e tantos outros de que neste momento não estarei a recordar-me como mereceriam. Não gosto muito do termo “embaixadores”, é mais de amantes espontâneos e cultivadores da língua portuguesa que precisamos e apoiar o seu trabalho e poder de disseminação de conhecimento é bem mais importante como serviço público do que torrar dinheiro numa TAP para dourar a pílula do tão propagado hub de Lisboa.

Feliz 2022 para todos, se possível menos viral para recuperarmos mobilidade e proximidade aos outros.

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