quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

ÁREAS PROTEGIDAS

 

 (A este rol de áreas protegidas há que acrescentar a recentíssima Área Protegida Nacional da Lagoa dos Salgados no Algarve)

(O tema das áreas protegidas aqueceu o ambiente do debate público na última metade do mês de dezembro deste ano que caminha para o fim. O aquecimento do debate acontece depois de em 2019 a agitação ter sido iniciada com a publicação do Decreto-Lei n.º 116/2019 que define o modelo de cogestão das áreas protegidas, na sequência da Resolução do Conselho de Ministros n.º 55/2018, de 7 de maio, que aprovou a Estratégia Nacional de Conservação da Natureza e Biodiversidade 2030. No Jornal Público de 23 de dezembro (link aqui), um conjunto de personalidades do meio do ambiente e da biodiversidade, gente certamente respeitável, assina uma tomada de posição algo catastrofista, considerando a cogestão das áreas protegidas o princípio do seu fim, ao qual respondeu o Ministro do Ambiente e da Ação Climática, João Pedro Matos Fernandes[1] no dia 28 de dezembro (link aqui) com outro texto de opinião refutando aquela visão. Vale a pena intervir neste debate sobretudo na perspetiva de conjugar os valores da descentralização que me são profundamente caros e os da defesa do capital natural e da biodiversidade, que me parece não estarem em perigo com o princípio da cogestão das áreas protegidas, sobretudo se formos firmes na defesa da descentralização como um processo de aprendizagem coletiva que certamente incomodará a relevância adquirida de muita gente, não imagino se esse será o caso das personalidades muito respeitáveis que assinam a tomada de posição acima mencionada…)

Trabalho em planeamento há mais de 40 anos, posso considerar-me um andarilho da sua prática, hoje com menos intensidade e mais reflexivo do que andarilho e, por isso, tenho um registo vasto de testemunhos, comentários, desabafos, impropérios que dariam para um valioso material de memórias do planeamento visto a partir da base. Nesse vasto rol de registos está obviamente a diversidade de perspetivas que a partir do local fui recolhendo sobre a gestão centralizada das áreas protegidas e de outras áreas de reserva não classificadas como áreas protegidas. Recordo que nos primeiros anos a que correspondem esses meus registos, o conceito e a operacionalização do princípio da remuneração dos ecossistemas não eram mais do que uma curiosidade para especialistas e universitários e que, por tal razão, a valorização económica de recursos endógenos associados a essas zonas continuava num limbo que penalizava fortemente os municípios com maior parcela de territórios envolvido por regimes legais de áreas protegidas. Em simultâneo, fui recolhendo apreciações da intervenção do ICNF que dariam um dicionário de impropérios talvez mais rico do que aquele que regista magistralmente os impropérios do Capitão Haddock (edição ASA que recomendo aos mais entusiastas, link aqui) do sempre adolescente Tin-Tin que existe em nós e que alguns dos nossos netos nos fazem reviver.

Nesse meu processo de cogestão de testemunhos com os autarcas para a contextualização da sua apreciação sobre o modelo então praticado de gestão das áreas protegidas, fui percebendo uma evolução significativa da sua perceção do valor do capital natural e da biodiversidade. Estamos já bem longe dos primórdios em que o ICNF era visto como uma contrariedade ao livre arbítrio para o mau uso do capital natural, e todos poderemos apontar algum exemplo dessa leviandade e degradação dos bens públicos. Hoje, é cada vez mais nítida a necessidade de distinguir com clareza entre o valor da biodiversidade e as escolhas locais para a valorização desse recurso, enquanto que o princípio da remuneração dos ecossistemas vai fazendo o seu caminho. E é cada vez mais claro que a defesa do valor da biodiversidade tem obviamente que contemplar uma dimensão nacional de avaliação e preservação do recurso, enquanto que as escolhas das modalidades possíveis de valorização do recurso têm de ser geradas e assumidas no plano local e em proximidade com as populações.

Para garantir essa compatibilidade não vejo melhor modalidade do que a da cogestão.

E o Ministro tem carradas de razão quando argumenta que os signatários da referida tomada de decisão apresentam uma visão idílica e distorcida dos resultados do modelo de intervenção anterior. Nos impropérios atrás referidos, elitismo e afastamento das populações foram o mínimo que ouvi em relação ao ICNF e todos sabemos que isso corresponde a uma pretenda ditadura do conhecimento e da visão centralista para a gestão da biodiversidade.

O problema continua a ser o mesmo de sempre. A descentralização incomoda muita gente, mas que chatice ter de partilhar fundamentos. E, mais do que isso, é necessário de uma vez por todas internalizar a ideia de que a descentralização é um processo, pois o tecido institucional, tal como os indivíduos, não nasce ensinado e pronto a implementar a descentralização sem mácula. Sim, apropriações indevidas e erros grosseiros vão ser cometidos e a aprendizagem coletiva exige maturação de tempo. Mas não há maturação em potência, para depois tudo ser começado sem o mínimo desvio. Isso não existe e os verdadeiros defensores da descentralização sabem isso perfeitamente. Assim é na gestão da biodiversidade e das áreas protegidas e assim também em muitas outras áreas. É necessária vigilância sobre os resultados. De acordo. Mas não nos iludam sobre os resultados da não descentralização. E sobretudo percam de vez essa arrogância das vossas cátedras de influência, já tiveram tempo suficiente para demonstrar a bondade das vossas perspetivas, não empatem, interiorizem de vez que não há democracia sem descentralização.

Aliás, por mais respeitáveis que sejam as personalidades subscritoras do documento, o universo que o assina está muito longe de representar toda a comunidade de cientistas e práticos com palavra a dizer sobre áreas protegidas e biodiversidade. Pronunciaram-se. Estão no seu direito. Mas expõem-se bastante quando num entre parêntesis no seu documento se referem à “reconhecida incompetência e ausência de convicções ambientalistas” do Ministério do Ambiente. Seria bom, por exemplo, que não ocultassem desvarios centralistas e de pura e tonta eficiência de governos anteriores e que apresentassem o seu testemunho sobre o mais completo desrespeito do Ministério da Agricultura por princípios saudáveis de sistemas produtivos que tenham em conta a crise climática que nos assola.



[1] Enquanto declaração de conflito de interesses, devo dizer que sou amigo pessoal do Ministro do Ambiente, já trabalhei com ele alguns anos, tenho dele a melhor das impressões e escrevo este post apenas do ponto de vista dos valores da descentralização de que este blogue é um acérrimo defensor.

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