(Sabemos como a partir da bravata de Trump o choque EUA-China aqueceu a temperatura da geopolítica mundial. Pressentia-se, entretanto, que para lá dessa bravata e da inconsistente política externa de Trump, havia uma questão estrutural que tenderia a impactar a administração americana, qualquer que fosse a orientação política que a comandasse. A guerra tecnológica e a área de influência do Pacífico pesam obviamente nesse choque de titãs. A extensão do problema para a Administração Biden confirmou essa tendência. Mas por detrás do belicismo da retórica da geopolítica, a economia mundial, vista sobretudo pelas lentes dos fluxos de capital, de dívida e de equity, continuou o seu caminho, ainda que sujeita às perturbações pandémicas. E alguns números sugerem que não será fácil quebrar o clima de interdependência entretanto criado. Por isso, o futuro da economia mundial não vive só de retórica política, ou, dito de outro modo, há coisas importantes para lá do carácter mais ou menos incendiário dessa retórica.)
Avisado pelo sempre perspicaz Timothy Taylor, agora com o seu Conversable Economist em formato wordpress (link aqui), dei comigo a folhear (mais propriamente “scrollar”) o Relatório do Banco Mundial International Debt Statistics 2022 (link aqui).
Trata-se de um documento de fácil acesso e que nos proporciona uma visão informada sobre os fluxos de capital, in e out, dos principais países, com foco particular nos países de rendimento intermédio. Por outras palavras, é uma forma expedita de conhecermos o estado do mundo em matéria de devedores e credores, tanto podendo oferecer-nos uma perspetiva da interdependência dos movimentos de capital, como nos revelar o drama do endividamento. Convém recordar que, tal como nos diz a teoria, os movimentos de capital tanto podem estar associados a processos de investimento direto estrangeiro envolvendo o controlo de processos de produção no exterior, como refletir pequenos investimentos de equity ou apenas fornecimento de instrumentos de dívida, por isso não dissociado do que os países conseguem fazer em matéria de exportação e importação de bens e serviços.
Um dos dados mais expressivos do Relatório é fornecido pelo peso da China como país destinatário de fluxos de capital, destacando-se entre os países de baixo e médio rendimento (ver primeira imagem). O ano de reporte é 2020, refletindo já a presença da pandemia. A China absorve mais de metade (51%) dos fluxos de capital dirigidos aos países de baixo e rendimento intermédio, numa tendência de aumento, o que contrasta com o observado no que diz respeito aos restantes países desse grupo. Com alguma surpresa para o que esperaria, o reforço da China como devedor é praticamente repartido em partes iguais entre instrumentos de dívida e de equity, aliás com crescimento mais pronunciado a nível dos instrumentos de dívida. A China emerge assim como o terceiro mercado de títulos mais importante no mundo, a seguir aos EUA e à União Europeia como um todo e o Relatório dá conta de procedimentos específicos das autoridades chinesas para facilitar essa atração. O que significa que se trata de uma opção controlada e determinada.
Mas o que é também interessante é que esta abertura da economia chinesa ao financiamento externo é indissociável do ganho de relevância que a China tem vindo a assumir como país que empresta aos países de baixo e médio rendimento (ver segunda imagem).
O crescimento dos fluxos de capital provenientes da China e dirigidos a estes países praticamente triplicou numa década e alicerça sobretudo a posição da China como financiadora de investimentos em infraestruturas e operações de investimento no domínio das extrativas. Angola é, por exemplo, um dos países que se destaca nessa abertura ao investimento chinês.
Todos estamos curiosos para conhecer o que vai acontecer com o já praticamente confirmado incumprimento da EVERGRANDE, o colosso chinês do imobiliário que passa por dificuldades notórias. Mas, como o sagaz Timothy Taylor corretamente o assinala, o que ressalta destes números são os processos de interdependência em que a China está mergulhada. A relação entre devedores e credores é complexa e alimenta relações de interdependência que é difícil quebrar apenas com o impulso da retórica da geopolítica. E o que é particularmente relevante é que a posição de abertura à entrada de capital é deliberadamente assumida pelas autoridades chinesas, designadamente as que pontuam no China Interbank Bond Market (CIBM). Por conseguinte, não se trata de um acaso, resultado da dinâmica de emergência de interesses privados na economia chinesa. Este tipo de autoridades está obviamente sob o controlo político do Partido Comunista Chinês, pelo que a agilização do processo de atração de investidores estrangeiros ao mercado de títulos é deliberada, abrangendo inclusivamente processos de repatriamento de fundos. E também não será por caso que títulos denominados em moeda chinesa estão integrados em alguns índices bolsistas.
Será assim particularmente relevante ir acompanhando o modo como as autoridades chinesas irão tratar alguns problemas de incumprimento dos seus empréstimos surgidos em economias de baixo e médio rendimento que têm a China como financiadora. Já que na qualidade de recetor líquido de capital aí é evidente a predisposição das autoridades chinesas para facilitar o reforço da integração.
Moral da história: a retórica da geopolítica aqueceu, pode até evoluir para algumas bolhas de agressividade, mas para lá dessa retórica existe uma interdependência que se foi formando no mercado de capitais a nível mundial que não é fácil colocar de repente a zero, sob pena de grandes instabilidades que a ninguém aproveitam.
Assim sendo, embora saibamos que a presença na China na economia mundial se faz acompanhar de condições de vinculação de certas medidas de política económica só possíveis em regimes autoritários e de controlo político máximo, a verdade é que a dinâmica dessa economia mundial e também do mercado de capitais se tornou indissociável dessa presença. Por isso, é nesse quadro da multilateralidade que as pressões sobre a “democratização” do modelo chinês terão de ser realizadas.
O reset das trocas e dos movimentos de capitais pondo a zero a presença da China traria consequências incalculáveis que, com exceção de bravatas incendiárias como a de Trump, serão sempre tidas como indesejáveis.
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