quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

AS ZONAS ESCURAS DA POLÍTICA MIGRATÓRIA EUROPEIA

 


(Não sou uma alma que se emocione com facilidade, mas devo confessar que fiquei um pouco zonzo com a leitura atenta e ajuda permanente do Google Tradutor de uma reportagem de exceção publicada pela NEW YORKER sob o título de “The Invisible Wall”, publicada na newsletter on line e na edição de 6 de dezembro (link aqui). Assina a reportagem o jornalista Ian Urbina, acompanhado de uma equipa de três elementos e, na versão online, o título é ainda mais contundente “The Secretive Prisons That Keep Migrants Out of Europe”. A reportagem gira em torno de um migrante da Guiné Bissau chamado Aliou Candé, e por isso o impacto da reportagem tenha sido mais forte, e da sua trágica história de morte-assassínio às mãos da Al Mabani, infraestrutura de detenção de migrantes na Líbia, sob a chefia da Guarda Costeira Líbia praticamente entregue à arbitrariedade de milícias locais.)

Se os nossos sentimentos europeus andam fortemente perturbados pelo que se passa no seu interior, a leitura da reportagem arrasa ainda mais a nossa avaliação, agora na dimensão da sua política externa humanitária relativa ao tratamento de migrantes. Todos sabemos, e a Senhora Merkel que o diga, que estamos a lidar com um assunto que não é para puristas, como bem o ilustra a fragilidade do acordo com o Senhor Erdogan para a Turquia servir de tampão. Os tampões migratórios conduzem-nos a estratégias de grande vulnerabilidade e risco, sobretudo quando os acordos realizados não permitem velar pela garantia interposta dos valores europeus. Os signatários desses acordos são tudo o que possamos imaginar, mas gente de bem e de princípios é que não são e o facto de terem sido assinados acordos diz bem do estado de desespero a que o confronto entre os princípios e valores humanitários e a “real politik” chegou.

No caso da Líbia, não há propriamente um acordo que possa ser analisado, mas a situação é ainda mais nebulosa, para não dizer negra, pois trata-se de apoios financeiros, técnicos e de formação e de oferta de equipamentos por parte da União Europeia a organizações de um Estado falhado ou ingovernável, como o ilustra a existência de dois governos ou de duas autoridades no país. Admitir que a Guarda Costeira Líbia é algo de semelhante a uma instituição equivalente de um país europeu é outra ilustração do desespero a que me anteriormente me referia, pois sob a liderança dessa organização o serviço “Directorate for Combatting Illegal Migration” está entregue a um conjunto desestruturado de milícias locais que traficam aquela ajuda e fazem dos migrantes que têm o azar de ir parar à Al Mabani vítimas indefesas, onde tudo se paga, melhor comida, medicamentos e a ida a um hospital, o uso do telemóvel para contactar a família, outras facilidades até à da libertação que normalmente corre mal e reinicia o processo junto de outra milícia local contra a migração ilegal.

A história tem que se lhe diga pois as unidades da Guarda Costeira Líbia, equipadas com barcos e outros equipamentos fornecidos pelas autoridades europeias no âmbito dos acordos com um Estado falhado (ao que tu chegaste Europa!), rivalizam com as unidades de salvamento geridas por ONG e outras instituições oficiais, chegando frequentemente mais cedo aos migrantes e transportando-os para as tais medonhas “facilities” de detenção de migrantes. A reportagem analisa com pormenor a posição ambígua das unidades do serviço europeu da FRONTEX, a qual desmente a existência de contactos formais entre esse serviço e as unidades líbias, mas que a reportagem de Urbina documenta com algum pormenor e rigor. Ou seja, não é seguro que a FRONTEX não esteja em alguns casos a funcionar como informador de ocasião da localização de embarcações com migrantes, o que nesse caso desmonta de cima a baixo a posição oficial europeia de que a responsabilidade cabe às autoridades líbias. Entregar “o ouro” ao bandido não parece ser uma via segura de defesa e preservação dos valores europeus e o que me parece evidente é que quando os beneficiários da nossa ajuda (Trust Fund) são um estado falhado e organizações informais que privatizam na prática o serviço de ajuda aos migrantes é de uma hipocrisia gritante sacudir a água do capote e endereçar a responsabilidade aos líbios. Por isso, o título online de Urbina, “As prisões secretas que mantêm os migrantes fora da Europa”, não é assim tão provocador como isso, pode ser incómodo mas fingir que esta questão não é uma questão da União é levar a hipocrisia da falsa diplomacia a limites insuportáveis.

A história foi trágica para Candé (e tantos outros), morreu na sequência de uma rixa entre migrantes alimentada e não evitada pelos guardas da Al Mabani em que ele não participou mas foi colateralmente atingido pela repressão tardia e poderia ter sido também trágica para o próprio grupo de jornalistas que foi alvo de prisão, violência e intimidação, salvos em última instância por iniciativas políticas do Departamento de Estado dos EUA e do governo dos Países Baixos.

A reportagem refere por fim que inquéritos à morte do migrante guineense terão sido realizados, que terá havido alterações nos acordos com o governo líbio (embora não saibamos que cumprimento terão), mas tudo indica que a Guarda Costeira Líbia continuará a ser apoiada.

Nuvens negras, bastante negras, pairam sobre a política migratória da União.

A multiplicação de processos-tampão tenderá a gerar ainda mais vulnerabilidade e a conduzir a tudo menos a uma perfeita “accountability” dos recursos europeus dispendidos nestas ações. Com efeitos temporais naturalmente diversos, continuo a pensar que parte destes recursos teria efeitos bem mais prolongados no tempo intervindo sobre os países de origem dos Candé deste mundo.

Prestar ajuda a estados desestruturados como a Guiné Bissau é também um grande desafio, mas as situações que determinaram na origem a vontade de Aliou Candé a seguir o exemplo dos seus dois irmãos são conhecidas, secas, colheitas falhadas, subida das águas, desertificação, que segundo o Banco Mundial deslocarão mais cerca de 150 milhões de pessoas. Foi a insustentabilidade da sua produção de mandioca, manga e caju em condições inenarráveis de infraestrutura e de acesso determinadas pela ação combinada daqueles fatores e pelo abandono das políticas públicas que o conduziu à inevitabilidade da saída, esperando com isso alimentar a prazo a sua família. A ajuda e intervenção a estas condições de infortúnio não se confundem com ajudas nacionais capturadas por narco-Estados ou simplesmente Estados falhados. Exigem estratégias diferentes de intervenção ao nível do local e as ONG podem ser parceiras dessa outra abordagem.

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