(Estudioso da dimensão estrutural do
desenvolvimento e menos, bastante menos, das suas manifestações conjunturais, o
orçamento, tal como ele é configurado em exercícios anuais sem uma dimensão de
mais largo prazo, inspira-me sempre análises penosas. Do orçamento para este primeiro ano de legislatura ficam-me alguns temas
que merecem destaque em todo este ritual.)
Tenho para mim que a replicação de exercícios anuais ao longo de uma
legislatura, dure o que ela durar, sem um quadro plurianual e de mais longo fôlego
para enquadrar metas escrutináveis democraticamente no horizonte de uma
conjuntura constitui um enorme desperdício de recursos para um debate político
mais sério. Tenho também de reconhecer que todas as tentativas, tímidas e
inconsequentes, de criação de mecanismos plurianuais de orçamentação falharam
ou perderam-se no esquecimento de alguns grupos de trabalho. Terá de haver
razões ponderosas para o explicar e estou disponível para as discutir e ate
aceitar.
Este primeiro ano da legislatura tem o sal da interrogação acerca do
presumível comportamento da esquerda parlamentar na votação do orçamento, o que
sugere que talvez o mais importante aconteça com matérias que foram reservadas
para as negociações na antecâmara da votação. Mas, passarmos por esse tema, a
verdade é que foram poucas as áreas que suscitassem atenção e debate mais
profundo, num contexto de orçamento superavitário, só explicável pela
necessidade de reduzir a dívida para um patamar que não constitua bloqueio a
uma margem de manobra mais lata acaso uma eventual sucessão de choques externos
obrigue de novo a um relançamento de procura interna.
Ora, dos poucos temas de debate sério que o orçamento suscitou (retiro
desse nível questões mais do gosto jornalístico) a do reforço no investimento da
saúde é, em meu entender, um dos únicos que vale a pena dissertar sobre ele.
Subsiste sempre a eterna dúvida se o reforço do investimento na saúde tem por
objetivo compensar dívidas a fornecedores cuja inelasticidade de incremento
pode gerar total instabilidade, repondo a zero ou em níveis mais consentâneos com
os valores de mercado o montante de tais dívidas ou se é uma via para fazer
caminho na redução da crónica suborçamentação que tem existido no financiamento
do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Mas há uma outra dúvida que também se vai
avolumando de ano para ano e que consiste em interrogar-nos se a reforma do SNS
pode ser de algum modo iniciado pelo empenho do investimento público no setor.
A Lei de Bases aprovada in extremis na legislatura anterior ficou aquém
do que poderia representar como primeiro passo para essa reforma. A esquerda
tem tido dificuldade em compreender que a defesa do sistema público de saúde
não pode ignorar a já intensa coexistência desse sistema público e do privado,
que é uma questão bem mais vasta e relevante do que a questão das PPP na saúde
e a presença de privados na gestão hospitalar.
Tenho para mim que a defesa do SNS pode ser exequível em modalidades em que
funcione um sistema convencionado em que o sistema público delega em certas
condições (melhor dizendo contratualiza) a prestação de cuidados de saúde pelo
setor privado organizado em hospitais ou em regime de consultórios privados.
Admito um sistema convencionado que possa evoluir sem estimular a drenagem
pecaminosa dos recursos formados no sistema público para o sistema privado e
que não deve ser entendido como réplicas plenas dos hospitais públicos ou da
diversidade de serviços que eles prestam em termos de cuidados de saúde.
Mas há um domínio em que a política pública de saúde pode dificilmente
controlar. Trata-se do efeito que o crescimento dos seguros de saúde e o que
eles já representam em termos de peso no volume de receitas dos operadores privados
de saúde. A única réplica possível é a da qualidade e organização da oferta
pública, reduzindo a incerteza que está na base da subscrição de seguros de
saúde. A ADSE ajuda mas por si só não será capaz de justificar crescimento tão
pronunciado.
Um outro tema que mereceria ter tido um debate político mais amplo respeita
ao aliviamento do peso fiscal no rendimento dos jovens que constituem família.
Ainda há dias me referia aqui ao cutelo que paira sobre a sociedade portuguesa
decorrente do gap salarial face às economias mais desenvolvidas da União.
Seria interessante que o sinal do incentivo fiscal aos jovens casais que ocupam
inicialmente um posto de trabalho pudesse ser secundado por uma política mais
abrangente em que as políticas de habitação pudessem ocupar também um lugar de
destaque. De qualquer modo, a intensidade do debate que este tema suscitou tem
uma ínfima expressão quando confrontado com o gerado em torno do reforço do
investimento na saúde.
Finalmente, uma outra nota que pareceu despercebida prende-se com a
convicção de que ainda não é desta que o investimento público fique mais
liberto do financiamento de fundos estruturais de investimento europeus. Já
agora um orçamento para o novo Ministério da Coesão Territorial em torno dos 50
milhões de € sugere que a nova ministra terá de batalhar forte e persistentemente
à porta dos Fundos Estruturais, mas isso fica para próximas leituras.
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