sábado, 21 de dezembro de 2019

O ORÇAMENTO



 (Estudioso da dimensão estrutural do desenvolvimento e menos, bastante menos, das suas manifestações conjunturais, o orçamento, tal como ele é configurado em exercícios anuais sem uma dimensão de mais largo prazo, inspira-me sempre análises penosas. Do orçamento para este primeiro ano de legislatura ficam-me alguns temas que merecem destaque em todo este ritual.)

Tenho para mim que a replicação de exercícios anuais ao longo de uma legislatura, dure o que ela durar, sem um quadro plurianual e de mais longo fôlego para enquadrar metas escrutináveis democraticamente no horizonte de uma conjuntura constitui um enorme desperdício de recursos para um debate político mais sério. Tenho também de reconhecer que todas as tentativas, tímidas e inconsequentes, de criação de mecanismos plurianuais de orçamentação falharam ou perderam-se no esquecimento de alguns grupos de trabalho. Terá de haver razões ponderosas para o explicar e estou disponível para as discutir e ate aceitar.

Este primeiro ano da legislatura tem o sal da interrogação acerca do presumível comportamento da esquerda parlamentar na votação do orçamento, o que sugere que talvez o mais importante aconteça com matérias que foram reservadas para as negociações na antecâmara da votação. Mas, passarmos por esse tema, a verdade é que foram poucas as áreas que suscitassem atenção e debate mais profundo, num contexto de orçamento superavitário, só explicável pela necessidade de reduzir a dívida para um patamar que não constitua bloqueio a uma margem de manobra mais lata acaso uma eventual sucessão de choques externos obrigue de novo a um relançamento de procura interna.

Ora, dos poucos temas de debate sério que o orçamento suscitou (retiro desse nível questões mais do gosto jornalístico) a do reforço no investimento da saúde é, em meu entender, um dos únicos que vale a pena dissertar sobre ele. Subsiste sempre a eterna dúvida se o reforço do investimento na saúde tem por objetivo compensar dívidas a fornecedores cuja inelasticidade de incremento pode gerar total instabilidade, repondo a zero ou em níveis mais consentâneos com os valores de mercado o montante de tais dívidas ou se é uma via para fazer caminho na redução da crónica suborçamentação que tem existido no financiamento do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Mas há uma outra dúvida que também se vai avolumando de ano para ano e que consiste em interrogar-nos se a reforma do SNS pode ser de algum modo iniciado pelo empenho do investimento público no setor. A Lei de Bases aprovada in extremis na legislatura anterior ficou aquém do que poderia representar como primeiro passo para essa reforma. A esquerda tem tido dificuldade em compreender que a defesa do sistema público de saúde não pode ignorar a já intensa coexistência desse sistema público e do privado, que é uma questão bem mais vasta e relevante do que a questão das PPP na saúde e a presença de privados na gestão hospitalar.

Tenho para mim que a defesa do SNS pode ser exequível em modalidades em que funcione um sistema convencionado em que o sistema público delega em certas condições (melhor dizendo contratualiza) a prestação de cuidados de saúde pelo setor privado organizado em hospitais ou em regime de consultórios privados. Admito um sistema convencionado que possa evoluir sem estimular a drenagem pecaminosa dos recursos formados no sistema público para o sistema privado e que não deve ser entendido como réplicas plenas dos hospitais públicos ou da diversidade de serviços que eles prestam em termos de cuidados de saúde.

Mas há um domínio em que a política pública de saúde pode dificilmente controlar. Trata-se do efeito que o crescimento dos seguros de saúde e o que eles já representam em termos de peso no volume de receitas dos operadores privados de saúde. A única réplica possível é a da qualidade e organização da oferta pública, reduzindo a incerteza que está na base da subscrição de seguros de saúde. A ADSE ajuda mas por si só não será capaz de justificar crescimento tão pronunciado.

Um outro tema que mereceria ter tido um debate político mais amplo respeita ao aliviamento do peso fiscal no rendimento dos jovens que constituem família. Ainda há dias me referia aqui ao cutelo que paira sobre a sociedade portuguesa decorrente do gap salarial face às economias mais desenvolvidas da União. Seria interessante que o sinal do incentivo fiscal aos jovens casais que ocupam inicialmente um posto de trabalho pudesse ser secundado por uma política mais abrangente em que as políticas de habitação pudessem ocupar também um lugar de destaque. De qualquer modo, a intensidade do debate que este tema suscitou tem uma ínfima expressão quando confrontado com o gerado em torno do reforço do investimento na saúde.

Finalmente, uma outra nota que pareceu despercebida prende-se com a convicção de que ainda não é desta que o investimento público fique mais liberto do financiamento de fundos estruturais de investimento europeus. Já agora um orçamento para o novo Ministério da Coesão Territorial em torno dos 50 milhões de € sugere que a nova ministra terá de batalhar forte e persistentemente à porta dos Fundos Estruturais, mas isso fica para próximas leituras.

Sem comentários:

Enviar um comentário