O artigo de José Manuel Fernandes no Público de hoje, “As guerras do euro ainda mal começaram”,
apresenta algumas inconsistências que importa salientar, pois mexem com algumas
das ideias menos tradicionais que temos vindo a debater neste espaço.
JMF centra o seu contributo para uma desejável clarificação da trágico-comédia
em curso em três temas sobre os quais constrói uma pretensa denúncia dos mitos
emergentes: (i) a falta de liderança política; (ii) o directório Merkosy; (iii)
a união política e a impressão de moeda pelo BCE.
Em termos muito resumidos: (i) o primeiro mito ocultaria a criação de um
castelo sem alicerces, pelo que o legado das boas e velhas lideranças poderia
ser visto como um presente envenenado; (ii) o segundo escamoteia a irreversível
diferença de culturas dominantes, francesa e alemã; (iii) o terceiro
continuaria a ignorar o défice democrático da construção europeia e os custos
associados a uma opção de mais federalismo e mais inflação.
Ninguém de bom senso ignora que a construção do euro foi precária. A metáfora
por mim utilizada é a de uma máquina não preparada para enfrentar situações de stress
mecânico. Mas o que está em causa no empobrecimento das lideranças políticas
foi a vassalagem/promoção de um projecto exclusivamente guiado por questões de
mercado único, sem ter em conta que uma lógica de mercado deixada à solta num
ambiente de níveis de desenvolvimento desigual tende a acentuar e não a reduzir
esses desníveis. A Estratégia de Lisboa foi a manifestação principal dessa
deriva. Tudo isto resulta das lideranças políticas actuais e não das
fundadoras. O alargamento a leste tendeu a agravar essa incúria, pois os novos
países aderentes interpretaram sempre essa lógica de mercado único como um não
retorno ao domínio soviético.
O segundo argumento é também pouco convincente. As posições democráticas
mais sólidas apontam para uma construção europeia mais gradualista e em
estreita articulação com o debate democrático nos países membros, bem como para
eleições europeias com uma clara mobilização política em torno das questões
europeias e não da baixa política interna. Aqui também, apesar da relevância
histórica do eixo franco-alemão, as velhas lideranças praticavam a concertação
política em torno de consensos mínimos. As novas lideranças adulteraram essa prática,
banalizando o apagamento das instituições.
No terceiro argumento, a inconsistência sobe de tom. O problema da união
política carece de debate democrático a nível nacional. Já o sabemos. E a
paralisia política hoje existente quanto a este tema é preocupante. Nada de
novo no argumento de JMF. Mas a inconsistência aperta no que diz respeito à acção
do BCE. Afirma JMF: “Não deixa de ser curioso ver como a hipótese de colocar o
BCE a imprimir notas não leva ninguém a meditar um segundo que seja nas consequências
inflacionárias dessa medida. Será que pensam, por exemplo, que depois seria
possível manter os juros tão baixos? Será que se esqueceram que a última vez
que Portugal desvalorizou de forma abrupta a sua moeda (aquando do acordo com o
FMI de 1983, era Mário Soares primeiro-ministro) a inflação disparou e, e,
pouco mais de um ano, os portugueses perderam em média mais 10% do seu poder de
compra, um tratamento bem mais violento do que o agora decidido pelo Governo?”.
Aqui a inconsistência virou pura demagogia. JMF não quer entender o que está
em causa verdadeiramente na reivindicação de um estatuto mais activo para o
BCE. O que está em causa é a abordagem global a uma não resolvida Grande Recessão
de 2008/09 e a correcção de tiro que se pede ao BCE, lembrando como alguns
observadores o fazem, que a precipitada subida da taxa de juro em Abril de 2011
decidida por Trichet, pode ter iniciado a instabilidade actual. A alternativa a
esse estatuto emissor tem sido a ideia de que a austeridade tratará de novo a
confiança nos mercados e uma retórica de crescimento que não convence ninguém. Robert
Skidelski, biógrafo de Keynes, invoca exemplarmente palavras sábias do
biografado: “Look
after unemployment and the budget will look after itself” (http://www.guardian.co.uk/commentisfree/2011/nov/29/cutting-fantasy-over?INTCMP=SRCH).
JMF não quer entender, por fechamento doutrinário, que
sem a retoma sustentada de condições de crescimento toda a estabilização de
expectativas cai por terra. Ignora ainda a dimensão avassaladora do desemprego
estrutural. E também os riscos de deflação que pairam sobre a economia europeia.
Sem comentários:
Enviar um comentário