domingo, 14 de janeiro de 2024

POR UM FIO …

 


(Tenho andado a ler com atenção a obra de Sylvie Kauffmann, Les Aveuglés (Stock, 2023), sugerida pelo meu colega de blogue. O relato bastante impressivo, com análise documental e uma bateria muito ampla de entrevistas com atores que viveram os acontecimentos passados, mostram como a perceção de que um novo Putin e uma nova Rússia estavam apostados num outro horizonte de conquista territorial foi lenta, a contragosto e sobretudo com inúmeros equívocos, sobretudo do eixo Paris-Berlin. A jornalista francesa traz para a reflexão evidências bastante profundas sobretudo sobre a Alemanha, que manteve durante largo tempo um estranho complexo de culpa face à Rússia e sobretudo uma veneração sobre o contributo que os Russos deram historicamente com os seus 27 milhões de mortos para derrotar o nazismo na Segunda Guerra Mundial. As inúmeras evidências e confissões reveladas pela obra de Kauffmann são preciosas para marcar de vez a existência de uma nova ordem política internacional, com uma conflitualidade latente que ou me engano muito, e oxalá me engane, marcará para o pior a vida dos meus quatro netos. O facto do problema palestiniano não ter acedido a uma solução política com um mínimo de estabilidade, o risco da arrogância de Israel induzir movimentos de réplica incontroláveis, a multi-perigosidade do Mar Vermelho e os desafios que a nova atitude imperial de Putin e da Rússia suscitam anunciam um ambiente político internacional cheio de fontes de combustível bélico. Conforme a perspicácia de Kauffmann o bem descreve, a sequência tendencial que a invasão da Geórgia em 2018 e a da Ucrânia de fevereiro de 2022 representa anuncia o pior possível do ponto de vista da existência de um novo padrão nos desejos de expansão russa. E não surpreendentemente, o livro de Kauffmann também nos explica a razão óbvia porque a Polónia e os Países Bálticos perceberam mais cedo do que toda a Europa que a Rússia de Putin não era de confiança.)

 

Quando se racionaliza toda esta mudança de contexto e sobretudo a lentidão exasperante com que ele se tornou claro e indutor de mudanças de posicionamento político no ocidente, a sensação que se forma nas nossas conclusões é simultaneamente estranha e desagradável. O risco de escalamentos descontrolados dos acontecimentos é elevadíssimo e pior do que tudo é a perceção do risco de que a bestialidade política de alguns líderes potenciais pode transformar-se num combustíveis detonador do pior dos acontecimentos possíveis.

A desigualdade manifesta com que Putin e o regime russo podem explorar as contradições ocidentais e sobretudo a deriva política para a extrema-direita vivida em algumas sociedades europeias quando confrontada com a capacidade ocidental de influenciar uma possível queda de Putin é preocupante. A ofensiva das sanções continua a não produzir resultados palpáveis em termos de deserção do apoio dos mais poderosos a Putin. A desigualdade da sociedade russa prospera e as notícias deram conta de eventos mundanos produzidos como se o número de mortos entre os combatentes russos não fosse tão elevado. E do ponto de vista da reorganização do comércio internacional russo em termos de acesso a consumos intermédios, designadamente tecnológicos, e de exportações há que convir que os resultados conseguidos pela economia russa continuam acima do esperado pelas sanções e proibicionismo ocidental. Aliás até pode dizer-se que a reorientação forçada a que a economia russa se viu forçada acabou por contribuir para o reforço de blocos económicos e comerciais que se opõem à hegemonia americana.

Em meu modesto entender, a situação ainda seria mais explosiva acaso a China não tivesse a fiabilidade algo perversa que sempre revelou e o Irão não estivesse propriamente em grandes condições para se entregar a grandes aventuras bélicas, pelo menos mais ampla e explicitamente do que tem revelado no apoio a todas as formas de xiismo violento. E os acontecimentos do Mar Vermelho o que mostram verdadeiramente é que a ordem económica global internacional, por mais em reestruturação que possa estar, ainda depende fortemente de circuitos e fluxos que se concretizam em paragens onde os EUA e o ocidente em geral não são propriamente recebidos como grandes amigos.

Alinhando com os irmãos Coen de Fargo e Barton Fink, isto só não está para velhos, como também não se recomenda de todo para a vida futura dos mais novos.

 

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