domingo, 28 de janeiro de 2024

A DESFRAGMENTAÇÃO DA PRODUÇÃO INDUSTRIAL MUNDIAL

 


(Já por repetidas vezes neste blogue se chamou a atenção para o diferente contexto em que pode hoje falar-se de reindustrialização ou de inversão do relativamente precoce processo de desindustrialização observado em muitas economias avançadas. Duas razões importa considerar para compreendermos essa fundamental alteração de contexto. Primeiro, a política industrial deixou de ser uma palavra proibida. Os EUA vierem de uma vez por todas validar o que países como a China, a Coreia do Sul, o Vietname e a Índia, por exemplo, vinham fazendo há muito tempo de candeias às avessas com a vacuidade do chamado Consenso de Washington. Segundo, a organização da produção industrial à escala mundial está em curso de uma profunda transformação, seguindo os rumos do que poderíamos designar de uma nova globalização. Tal como o já referi em post anterior, escreve quem sabe e Robert Baldwin, Professor no IMD de Lausanne, é hoje a voz mais avisada e conhecedora sobre estes temas e a ele se devem os alertas mais oportunos e decisivos. É o caso do tema de hoje, à luz do qual Baldwin analisa o que parece estar em curso na organização da produção industrial à escala mundial – uma espécie de desfragmentação da produção industrial à escala mundial.)

A figura do meio do diagrama que abre este post simboliza bem o que a produção automóvel representou em termos de fragmentação da produção industrial à escala mundial. A diversidade de localizações onde os consumos intermédios necessários à produção automóvel era nesse período flagrante, fazendo com que cada viatura, independentemente do local em que fosse montada na sua fase final para distribuição pelo mundo, representasse uma espécie de símbolo do modo como as cadeias de valor da produção automóvel estavam então organizadas. Baldwin considera que a desfragmentação é um efeito lateral natural da própria automação industrial, a qual permite que cada máquina numa dada fábrica possa realizar muito mais tarefas do que realizava no auge da desfragmentação mundial. 

O economista do IMD utiliza um indicador bastante simples, o Índice de Fragmentação Global que é calculado de uma forma também bastante simples. Não é mais do que um rácio em que no numerador se calcula o valor total dos bens intermédios utilizados pelos produtores industriais e no denominador o valor total das vendas desses mesmos produtores. Os valores do rácio são ainda elevados (superiores a 50% para a generalidade das economias mais emergentes e menos elevados para as economias mais maduras).Mas o seu comportamento no tempo é claramente de descida, sobretudo a partir da década de 2010.

Existe seguramente uma economia da (des)fragmentação e ela envolve obviamente dimensões de progresso tecnológico que pode favorecer ou desfavorecer a fragmentação, mas obviamente também questões de custos de produção e sua distribuição pelo mundo à medida que o avanço da industrialização e do emprego industrial nas economias emergentes e nas maduras vai obviamente implicando alterações salariais que alteram a arbitragem de custos pelos diferentes locais de produção no mundo. Mas a indeterminação política que paira sobre a economia mundial não pode deixar de se refletir sobre a extensão das cadeias de valor globais.

O objetivo do post consiste simplesmente em evidenciar este novo contexto e alertar para as fortes implicações suscitadas para economias como a portuguesa, que se encontram ainda num processo de mudança estrutural em matéria de especialização produtiva. O próprio conceito de “nicho de especialização” irá ter com a desfragmentação da produção industrial se esta vier a consolidar-se por um período relativamente longo uma profunda alteração. E sobretudo será necessário estar atento ao que será objeto de opções europeias e que margem de autonomia será reservada às políticas industriais de cada estado-membro, tudo isto com o digital a pairar sobre estas opções.

A reindustrialização não equivale a favas contadas. Especial atenção (e as agências nacionais como a ANI terão de estar profundamente atentas às transformações das cadeias de valor globais nos setores que podem interessar à especialização internacional da economia portuguesa) terá de ser concedida a tais opções. Elas não poderão ser assumidas de ânimo leve, mas antes estudadas em profundidade e sem dar ouvidos a investidores metediços e influentes que podem não estar certos na sua própria leitura da referida desfragmentação. É óbvio que tais opções exigem o concurso de investidores privados, designadamente internacionais que tragam investimento direto estruturante para Portugal. Mas será essencial evitar gato por lebre. Muito investimento estará por estes anos mais próximos a ser financiado no âmbito do PRR e do PT2030. A monitorização desse investimento tem de ser feita com implacável rigor, para antecipar o que a indústria portuguesa e a produção de conhecimento estarão a consolidar com tais investimentos, para que se possa avaliar com objetividade de que modo estão em linha ou não com as tendências observadas nas cadeias de valor globais.

O contexto da economia global está a mudar. Quanto mais se vive na crista da onda de tais mudanças mais difícil tomar o pulso ao que está a emergir.

 

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