sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

O ECLIPSE DA ESFERA PÚBLICA

 


(O tema central deste blogue, a nebulosa relação entre o interesse privado e a ação pública, ou, se quiserem, a difícil coexistência entre o interesse privado e o interesse público, cruza-se obviamente com muitas temáticas, uma das quais frequentemente invocada em posts anteriores, é o da esfera pública. Em reflexão anterior, chamei a atenção para a relevância de um pequeno livro de Jürgen Habermas sobre a transformação estrutural da esfera pública e da política deliberativa. Aliás como o próprio Habermas o assinala nessa pequena mas lúcida obra, o tema vai direitinho à crise atual do jornalismo, seja porque o modelo de negócio dos jornais está em profunda transformação, seja porque outras dimensões da esfera pública também para isso concorrem, arrebatando procura a esses mesmos jornais. Obviamente que a densidade deste tema não escapou à profundidade de pensamento de António Guerreiro (ver crónica de hoje no ÍPSILON), e aqui estou eu de novo a elaborar algumas variações sobre o tema, que é afinal constituinte deste blogue e, muito sinceramente, não anteciparia há doze anos que ele assumiria tanta importância nas sociedades democráticas.)

 


António Guerreiro, que invoca o Habermas dos seus inícios, tem a perspicácia de relembrar que essa esfera pública se alimentou tradicionalmente de um tripé valioso nas sociedades democráticas, os jornais, a escola e a universidade, com a liberdade a representar o cimento dos laços que integravam este triângulo. Por aí circulava saber e autoridade intelectual, combinando cultura e crítica, socializando pensamento que de uma forma mais ou menos direta ou indireta chegava à decisão política e ao voto democrático. Se é um facto que os jornais e o jornalismo estão num caco e enfrentam dias difíceis que podem conduzir à desistência, ao desaparecimento ou a fins inconfessáveis de agradar oportunisticamente a “novos senhores”, não é menos verdade que a escola e a universidade também se desestruturaram e deixaram de alimentar com a mesma constância a dita esfera pública. A escola, ameaçada por questões de dignificação e chamada indevidamente a compor e encontrar soluções para uma sociedade cada vez mais lassa e fraturada, como que se pudesse substituir-se às famílias, está obviamente em crise do ponto de vista de alimentar a vitalidade da esfera pública. Existem obviamente projetos relevantes na área da cidadania, da participação cívica e da defesa dos direitos humanos, mas são experiências pontuais sem força e expressão para compor os problemas da escola mediana. Por sua vez, a universidade continua ela cada vez menos escrutinada e subordinada a guerras entre pequenos poderes. A cultura de mérito e de progressão de carreiras que domina a universidade afasta decisivamente os universitários da intervenção na esfera pública, menoriza a intervenção pedagógica que não é praticamente valorizada, sendo por isso hoje cada vez menos centros de alimentação de reflexão na esfera pública. A questão climática talvez tenha espevitado alguns espíritos mais adormecidos, mas ainda não revela força e intensidade suficientes para inverter a situação e colocar de novo a universidade no coração de uma esfera pública mais vibrante e qualificada.

Obviamente que a internet e as redes socias encarregaram-se de destruir o tal modelo de esfera pública em que o triângulo jornais e jornalismo, escola e universidade se autoalimentavam. Guerreiro domina bem esta problemática e ela está no coração da sua reflexão, utilizando expressões muito curiosas como “mundo da pós-verdade”, “esferículas públicas”. Elas explicam a atomização profunda do que era principalmente coletivo e socializado e sobretudo a esmagadora indiferença com que o cidadão comum deixou de se interessar pela distinção entre o verdadeiro e falso e guiar-se apenas por aceitar apenas o que corresponde às suas convicções por mais exóticas, incoerentes ou disparatadas que o sejam.

Assistimos, assim, à inversão da ordem das coisas. Os jornais e jornalistas ficaram eles próprios presos das redes sociais e das suas alucinações seja do discurso de ódio, seja do wokismo mais descabelado. Nessas condições de descida da qualidade aos infernos, é difícil pedir a um cidadão consciente que assine ou compre jornais. Pela minha parte, que multiplico assinaturas digitais e mesmo assim ainda compro alguns em papel porque continuo a apreciar a relação entre uma boa esplanada, uma bebida e um jornal, lá vou resistindo enquanto a bolsa me permitir, mas há limites para suportar a degradação.

Nota final

Estou profundamente de acordo com Daniel Oliveira a propósito das medidas a tomar sobre a manifestação da extrema-direita em Lisboa contra a pressuposta islamização da sociedade portuguesa. Por mais tolerante que deva ser, a democracia não pode autorizar a livre manifestação na rua e da sua ocupação em torno do discurso de ódio e de intimidação. De que é o Ministério da Administração Interna está à espera para proibir a manifestação?

 

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