(Temos frequentemente a sensação de que o tema da emergência climática e das necessárias adaptações dos modos de produção é uma espécie de discurso da treta, com uma retórica pia e bondosa, mas à qual a grande generalidade dos que têm responsabilidades de produção e poder de decisão sobre a matéria ignoram olimpicamente. Temos também a sensação de que esse autismo climático é publicamente consentido. As políticas públicas tardam de facto em passar do discurso à obrigatoriedade de ação, provavelmente apoiadas por uma opinião pública que ela própria tarda também em perceber que se trata também de adaptação de modos de vida e de consumo. Certamente que há exceções, sobretudo a nível industrial, muito por força dos padrões de concorrência internacional e nestas coisas a produção nacional respeita mais os ditames da concorrência do que a retórica dos preâmbulos legislativos. Tenho para mim que esse autismo climático é ainda mais pronunciado a nível agrícola. Várias notícias recentes oferecem-me evidência que isso é de facto assim. Vou neste post ensaiar de novo essa demonstração.)
A atividade agrícola é praticamente a única em Portugal que não tem de sujeitar-se a um processo de licenciamento prévio. Aquilo que as bondosas almas liberais entenderão que se trata de uma brava resistência e evasão à burocracia pública coloca nos tempos atuais de emergência climática e de necessidade de revisão dos modos de produção um enorme problema às políticas públicas.
Vejamos, por exemplo, o que se passa em locais como o território do Alqueva em que o país realizou um avultado investimento infraestrutural garantindo um relevante perímetro de rega (atualmente uma chuva abundante que tem banhado o Alentejo coloca as reservas de água do Alqueva perto do seu máximo, com números“perto dos 1200 metros cúbicos por segundo”).
Apesar desse investimento avultado, proporcionando à atividade agrícola relevantes externalidades positivas, o Governo não tem qualquer possibilidade de influenciar as escolhas setoriais e privadas para o investimento agrícola. O que significa que se esse mesmo investimento empresarial privado for surdo e negar a emergência climática então o avultado investimento infraestrutural público não terá qualquer consequência sobre o reordenamento do setor em conformidade com a adaptação climática. Poderemos mesmo dizer que terá o efeito perverso: a ilusão da criação de um amplo reservatório de água criará a ilusão de que não existe necessidade de adaptação dos modos de produção.
O que se passa nos territórios do Algarve e do Sado ainda é mais preocupante, pois é nesses territórios que o problema da escassez de reservas de água é mais saliente e estaremos já a assistir à perigosa exploração clandestina ou legalizada de aquíferos subterrâneos com uma multiplicidade de furos a consumar o “salve-se quem puder” que se estende como sendo a mais perversa “mancha de óleo”. Certamente nestes territórios que as escolhas de amplas áreas de produção de abacate (e também de frutos vermelhos) veio introduzir uma descontrolada complexidade, mas convém referir que, sobretudo no Algarve, a especialização produtiva tradicional dos citrinos é fortemente consumidora de água e enfrenta um problema terrível de escassez.
Com estes alertas evidentes que anunciam o pior na resolução do equilíbrio entre turismo e produção agrícola, seria compreensível vislumbrar-se pelo menos a ideia de que, pelo menos para novos investimentos, a emergência climática deveria estar no centro das preocupações da política pública.
Obviamente que se compreendem as vozes que encaram a dessalinização como a grande esperança de mitigação do problema. Mas conviria neste caso compreender que a solução do aproveitamento da água do mar é um método de custo elevado, que a preços reais de custo irá ter um profundo impacto nos custos de produção de citrinos. Não será por acaso que, na vizinha Espanha, me dizem que é elevado o número de centrais dessalinizadoras que está fora de combate não por problemas técnicos, mas devido à ausência de produtores com condições de suportar os custos reais da sua utilização. Não está obviamente fora de questão o papel do investimento público na sua construção, mas o problema estará no custo da sua utilização.
Retirando as exceções de alguma agricultura inteligente e sobretudo a experiência pioneira do vinho como atividade que tem internalizado os desafios das mudanças climáticas e se tem armado tecnologicamente para as gerir proactivamente, parece imperar uma espécie de autismo agrícola em relação à emergência climática e à escassez das reservas de água como uma das suas grandes manifestações.
Espero que em Portugal se resista e contrarie a via dos transvases inter-territoriais de água como mitigação do problema algarvio e do Baixo Alentejo. O Público dedicou por estes dias um longo tratamento a esta questão. Por aí se percebe que esse tema tenderá obviamente a introduzir uma conflitualidade territorial da qual não temos até agora nenhum exemplo próximo ou similar. O país dispensa esse campo de não coesão territorial, pois já abundam os fatores que a tendem a reduzir.
Mas o que me parece incompreensível é que a política pública agrícola em Portugal pareça continuar a ignorar em termos práticos de implicação política o problema da emergência climática e correr atrás do prejuízo e não atuar proativamente.
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