(O meu filho Hugo, no âmbito da sua preparação para o podcast da Fundação Francisco Manuel dos Santos, (IN)Pertinente do dia 20 de dezembro de 2023 (link aqui), já me tinha alertado para o interesse da obra de uma economista americana da Universidade de Maryland, Melissa S. Kearney de sua graça e jovialidade. Sabemos como a sociedade americana tem sido objeto de uma ampla diversidade de estudos sobre as razões que levam uma grande parte dos americanos a perder o comboio do desenvolvimento. Vários ângulos de análise têm sido explorados no sentido de tentar perceber esse profundo “divide” que começa a cavar um fosso intransponível entre os americanos, com a agravante da bestialidade de Trump pescar avidamente nessas águas e com os Democratas cada vez mais a braços com as suas contradições. O que Melissa Kearney nos traz é uma perspetiva totalmente inesperada. Dito em linguagem dura, e a autora remete-o para o próprio título, é que começa a ser um enorme privilégio nascer-se com um pai e uma mãe estruturados num casamento considerado normal. E os que não nascem nessas condições parecem estar condenados a uma trajetória impiedosa de ficar para trás e de desigualdade. Considero que a nossa esquerda que se bate e se esgota nas chamadas causas fraturantes tem aqui uma investigação que vale a pena ser discutida de mente aberta. Estamos aqui perante um mecanismo de geração e reprodução de desigualdades para o qual não adianta encontrar saídas do tipo de considerar que se trata de investigação ao serviço do conservadorismo. Ouçam o podcast do Hugo Figueiredo e se desejarem promovam uma discussão desinibida sobre o livro de Melissa Kearney.)
Avisadamente, Melissa Kearney começa por alertar para uma evidência razoável, que não pode ser confundida com uma cedência ao conservadorismo:
“(…) É razoável argumentar, por exemplo, que uma família com dois progenitores tem uma maior capacidade de proporcionar recursos financeiros e não financeiros a uma criança do que uma família com um só progenitor o pode fazer. Invocar esta questão não significa julgar, criticar ou diminuir famílias com um só elemento; equivale simplesmente a reconhecer que (1) as crianças exigem muito trabalho e muitos recursos e que (2) ter dois progenitores na família significa geralmente ter acesso a mais recursos dedicados à tarefa de criar uma família”.
De mente aberta e apoiada por cerca de 25 anos de investigação dedicada ao estudo da pobreza, da desigualdade e da estrutura familiar, Melissa Kearney não tem dúvidas em considerar com evidência adequada que “o declínio do casamento e o correspondente crescimento do número de crianças que são educadas em famílias de um só progenitor contribuiram para a insegurança económica das famílias americanas, alargaram as diferenças de oportunidades e de resultados para crianças provenientes de diferentes contextos que coloca hoje desafios económicos e sociais que não podemos nos permitir ignorar – mas que poderemos não ser capazes de resolver”.
O que me parece muito interessante na investigação de Kearney é o facto dela corresponder a uma já longa experiência de estudo e de investigação sobre os temas nos quais este tema está mergulhado. E é isso que a autoriza a pensar que o declínio do casamento e o aumento da probabilidade de uma criança ser criada em ambientes de um só progenitor constituem, simultaneamente, uma causa e uma consequência da profunda desigualdade em que a sociedade americana está hoje manietada e que se reflete numa queda abrupta da mobilidade social ascendente. Tudo isto a ponto de começar a ser um enorme privilégio poder nascer e ser educado num quadro de dois progenitores, obviamente ligado aos mais abastados e qualificados. Sim. Esta conclusão é que pode ser contundente. Na sociedade americana de hoje, é entre os mais abastados e qualificados (designadamente com formação universitária) que a probabilidade do casamento e da sua manutenção é mais elevada. E tudo isto num ápice de evolução, cerca de 40 anos e não mais.
Apenas alguns números para vos aguçar o apetite de uma leitura mais profunda (a tentação da Amazon é uma praga, reconheço):
- Em 2019, apenas 63% das crianças americanas viviam em famílias de progenitores casados, quando em 1980 essa percentagem era de 77%;
- Em 2019, 84% das crianças cujas mães tinham 4 anos de formação universitária vivia em famílias de dois progenitores, tendo descido 6 pontos percentuais desde 1980; em contrapartida, só 60% das crianças cujas mães não tinham formação universitária ou por lá tenham passado fugidiamente viviam com dois progenitores;
- A situação é ainda pior para as crianças cujas mães não completaram sequer a formação universitária – 57% apenas vive com dois progenitores, revelando uma descida abrupta face a 1980, cujo valor era de 80%.
Números duros e crus, revelando a presença de um mecanismo claríssimo de reprodução social da desigualdade, algo que nos anos 50 na economia do desenvolvimento designávamos por círculos viciosos. Ora aí estão eles de regresso, com consequências impiedosas na descontrução social, diria mesmo na regressão social.
Confundir isto com cedências ao conservadorismo é pura patetice de intelectuais mimados e abastados.
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