(Sou dos que, com convicção, tenho orgulho em ter um Português como António Guterres como Secretário-Geral das Nações Unidas. António Guterres poderia obviamente estar sossegado e cultural e socialmente interventivo como sempre foi a gozar as amenidades de uma reforma, fosse lá onde fosse. Mas a sua consciência crítica e social, que está indissociavelmente ligada às suas profundas convicções religiosas, levou-o a enfrentar com coragem e tenacidade os desafios de liderar uma organização internacional que está sempre sob o fogo das contradições de governação do mundo de hoje. E, de facto, talvez nenhum outro Secretário-Geral teve de enfrentar um contexto internacional tão desafiante e perigoso como aquele em que o mundo hoje vive, com a multiplicação de guerras locais e regionais e a cada vez mais intensa ameaça de um conflito mundial de maiores proporções. Certamente que António Guterres nunca imaginaria ter de estar à boca de cena de uma situação internacional de grande conflitualidade, expondo a nu de forma crua as limitações do modelo de governação mundial que a ONU protagoniza. Assumindo posições corajosas a propósito do conflito entre Israel e o Hamas, que os especialistas da diplomacia mais calculista se apressaram a criticar, Guterres tem agora de enfrentar o duro golpe de ver uma das suas agências alegadamente envolvida em ligações menos claras com o Hamas (possível envolvimento de membros da UNRWA no fatídico ataque de 7 de outubro de 2023). Isso determinou que uma dezena de países, não é difícil imaginar quais, tenham suspendido as contribuições financeiras para essa agência, complicando as já trágicas condições de assistência humanitária ao povo palestiniano. A acusação envolve a alegada participação de 12 membros da UNRWA no referido ataque e a também alegada existência de cerca de 1200 em 1300 funcionários com relações com o Hamas que Israel terá detetado cruzando informação.)
Não é seguramente de hoje e muito menos atribuível à liderança de Guterres a por vezes nebulosa atividade de algumas agências internacionais em termos de conflitos de interesses e de algumas formas mascaradas de corrupção. O mesmo acontece em agências europeias. Amigos meus angolanos torciam frequentemente o nariz a algumas agências europeias implantadas em Angola, com comportamentos que podiam confundir-se com corrupção. Como é óbvio, em organizações internacionais com uma dimensão gigantesca de efetivos e de implantação territorial é praticamente impossível evitar a ocorrência de casos tresmalhados de comportamentos menos claros. O que importa de facto é a evidência de que existem processos internos de monitorização e supervisão dessas situações, limitando-as a situações pontuais e dissuasoras e sobretudo conseguindo que isso não se transforme num efeito perverso de reprodução das condições favoráveis à corrupção disseminadas por muitos dos países sob ajuda humanitária internacional.
A literatura fornece-nos ampla evidência de que os mecanismos de distribuição da ajuda humanitária internacional em muitos desses países representam uma fonte potencial de corrupção, já que essa distribuição não pode deixar de envolver as próprias organizações da sociedade local e torna-se praticamente impossível controlar a transparência e equidade da sua atividade. Não podemos ignorar que muitos desses países são atingidos por conflitos étnicos e armados que desestruturaram toda a cadeia de relações sociais e institucionais, gerando vazios fortemente apetecíveis para a proliferação de práticas e interesses menos claros.
Os EUA foram um dos países que suspenderam imediatamente a contribuição para a UNRWA, mas Antony Blinken enunciou publicamente uma tomada de posição relativamente equilibrada, exigindo a realização de investigação rigorosa, mas não deixando de sublinhar que a ajuda humanitária da UNRWA em Gaza não poderia ser interrompida, sob pena da tragédia humanitária nesse território poder ultrapassar todos os limites do tolerável.
De qualquer modo, a verificar-se efetivamente evidência de infiltração da UNRWA por elementos do Hamas, isso pode representar um rude golpe na capacidade de afirmação de Guterres e da ONU na tentativa de infletir e moderar a reação israelita. Sabíamos que o Secretário-Geral tinha já uma vida atribulada. Sabíamos também que as pretensões de desmantelamento da UNRWA por parte de Israel não são de agora. Mas o facto é que não existe em Gaza qualquer outra agência que possa liderar a distribuição da ajuda humanitária. Por isso, o Secretário-Geral iniciará brevemente uma série de visitas aos países doadores que agora suspenderam o apoio.
Guterres e a população palestina martirizada de Gaza não mereciam este rude golpe. O Hamas parece ser cada vez mais uma organização em que tudo em que toca deixa um rasto nefasto, numa espécie de modelo de toque de Midas ao contrário. Suspender a guerra será obviamente um grande desafio, mas restabelecer as condições decentes de uma representação palestiniana será uma tarefa ainda mais ciclópica.
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