(in "Baldwin e outros - Deconstructing deglobalisation: the Future of Trade is in Intermediate Services"
(Recordo-me que no meu último curso sobre globalização e desenvolvimento económico no mestrado de Economia e Gestão da Inovação na FEP já aflorava o tema dos novos rumos da globalização com a Grande Recessão de 2008 a inspirar a abordagem. Desde essa data, 2009-2010, novas fissuras da globalização emergiram. O rácio “Exportações + Importações mundiais/PIB mundial” começou a dar sinais de misteriosa estagnação. A pandemia veio trazer uma importante machadada pelo menos em termos de interrupção de circuitos correntes de circulação de produtos intermédios e finais. Um grande ponto de interrogação formou-se em torno das cadeias de valor globais. A fricção crescente entre os EUA e a China e depois a invasão da Ucrânia encarregaram-se de amplificar as tensões. E ainda mais recentemente, zonas mais ou menos explosivas como o Mar Vermelho ou a possível extensão regional do conflito Israel-Hamas acrescentaram combustível. E por muito que boa gente fale de digitalização do comércio mundial, a verdade é que questões como a insegurança no Mar Vermelho o fazem tremer, o que é um indicador indireto de que digitalização sim, mas … Nestas questões, a minha grande preocupação de sempre é a de me apoiar em economistas fiáveis, por outras palavras, de economistas que não se deixem seduzir pela primeira evidência de interpelação, desatando a construir formalizações precoces que acabam por ser um valente desperdício de tempo, às vezes puro lixo de ruído que não acrescentam nada a uma leitura profunda das mudanças estruturais por mais ocultas que se apresentem. A experiência e a muita leitura ensinaram-me a identificar quem é fiável e quem devo evitar para poupança do meu tempo e das minhas cansadas meninges. Richard Baldwin, afiliado à IMD Business School de Lausanne na Suiça é um desses apoios fiáveis. É nessa base que hoje aqui o divulgo aos leitores deste blogue, creio que provavelmente em segunda ou terceira edição.)
Na sua atividade frenética no X (ex Twitter) e também com publicações no VOX EU, Baldwin dedica já há longo tempo atenção analítica preciosa à questão de saber se o comércio internacional está a aproximar-se ou a afastar-se da ideia de comércio internacional livre. Em 2006, Baldwin publicou dois textos que são referência nesta matéria: um artigo designado de “Globalisation: the Great Unbundling(s)” e uma obra marcante “The Great Convergence”. A ferramenta utilizada por Baldwin é muito simples. Compara estruturas de produção e consumo entre diferentes países, com duas situações extremas a delimitar o intervalo: países que produzem tudo o que consomem e que consomem tudo o que produzem e um outro extremo em que os padrões de produção estão associados a condições de oferta nacionais e os padrões de consumo dependem de preferências e preços definidos a nível mundial. O modelo de análise que daqui resulta é relativamente simples: o padrão previsível resulta de cada país consumir parte do que produz em função da sua quota de rendimento mundial, exportando o restante.
Aplicando este modelo, Baldwin confirma que o mundo se tem aproximado mais do ponto de não comércio do que do livre comércio, o que converge neste caso com todos os dados impressivos, económicos e políticos, que apontam para uma desglobalização, que não sabemos ser temporária ou estrutural e de longo prazo futuro.
Na sequência das abordagens iniciais de 2006, Baldwin acaba de publicar um artigo bem fresquinho na Asian Economic Policy Review, juntamente com colaboradores seus, Rebecca Freeman e Angelos Theodorakopoulos, intitulado: “Deconstructing Deglobalisation: The Future of Trade is in Intermediate Services”.
Todo o raciocínio é conduzido a partir de duas evidências que não podem deixar de ter uma leitura combinada. A primeira evidência é que a intensidade de comércio mundial de bens teve o seu pico em 2008, não mais crescendo a partir daí. A segunda aponta para que o peso do comércio mundial de serviços tenha continuado a subir a partir dessa data, representando as exportações de serviços cerca de 20% das receitas de exportações globais. Compreende-se a tese de Baldwin. A globalização não terá encerrado para balanço. Simplesmente evoluiu e está diferente, sugerindo que tem vindo a imaterializar-se. O que parece compatível com a ideia de digitalização do comércio mundial.
Recordemos, entretanto, algo de importante. Em princípio, isto é, pelo menos ao nível dos grandes números, os serviços são dominantemente ainda intensivos em trabalho, o que permite antecipar que as diferenças de custos com que são produzidos ainda serão durante longo tempo acentuadas. Isto não significa que para uma faixa mais limitada de serviços, sobretudo os de maior sofisticação e intensidade em conhecimento, não esteja já em curso um processo de aproximação tendencial das condições de produção. Mas mesmo aqui, nos casos em que a incorporação de conhecimento se faz à custa de trabalho muito qualificado, continua a verificar-se que os investigadores indianos e chineses, por exemplo, trabalham com salários bem mais baixos do que os observados nas economias mais avançadas ocidentais.
Com uma análise mais fina em termos de setores envolvidos, os três autores mostram que o pico das exportações no PIB não acontece em 2008 para todos os países. Mostram ainda diferenças entre as exportações de bens e de produtos intermédios, tendo estes últimos acelerado fortemente entre meados da década de 90 e da de 2000, fase aliás conhecida pela “second unbundling”.
Mas onde os autores não encontram dúvidas é na evidência de que as exportações de serviços nem atingiram um pico nem estagnaram, tendo pelo contrário continuado a subir. Especial atenção é concedida aos chamados serviços modernos ou também por vezes designados de serviços intensivos em conhecimento: telecomunicações, serviços em TIC, outros serviços empresariais (onde estão os serviços de I&D e a consultoria), serviços financeiros, seguros, royalties e licenças. Sem surpresa trata-se de uma tipologia com forte concentração: quatro ramos respondem por 90% da oferta, com destaque para os outros serviços, as telecomunicações e os serviços de TIC.
Fui à procura de encontrar uma moral de história para esta evidência empírica recente.
Curiosamente, enquanto refletia sobre a moral da história possível, li no Expresso on line uma referência a palavras recentes de Pedro Nuno Santos que referiam: “Para Pedro Nuno Santos, foi um “erro” os governos anteriores apostarem tudo na indústria e quererem “dar tudo a todos”, numa tentativa de não deixarem ninguém descontente: é preciso fazer “escolhas” e não ter medo de “decidir”. Só assim, disse Pedro Nuno Santos, se fará Portugal “grande outra vez”.
Os dados publicados pela equipa de Baldwin não podem ser ignorados na discussão sobre a mudança estrutural das economias que se pretende influenciar através de políticas públicas que induzam a alocação do investimento empresarial privado. Uma das consequências é, por exemplo, esta: os propósitos de ressurgimento industrial ou de reindustrialização encontrarão um comércio internacional mais exigente e seletivo, na medida em que se dirigirão a um mercado mundial em encolhimento. Não quer dizer que não seja possível. É antes necessário prever condições de concorrência mais apertadas para disputar mercado global. Por outro lado, a aposta nos serviços intermédios encontrará um mercado global em crescendo, mas com exigências de sofisticação, de gestão e de recursos humanos que favorecem os grandes players. Que o diga favoravelmente a Irlanda. A relação qualificação-salário que Portugal apresenta em algumas categorias de recursos humanos avançados pode favorecer a atração de investimentos-alavanca. Há sinais promissores nesta área nas aglomerações metropolitanas de Lisboa e do Porto. E não esqueçamos que o turismo continuará a ser uma almofada nessa onda da exportação de serviços.
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