(Nos bons velhos tempos em que queimava as pestanas e reduzia as horas de sono em torno do trabalho académico na FEP, com a economia do desenvolvimento e a globalização no foco do meu trabalho, a nossa equipa orgulhava-se por ter sido pioneira no desenvolvimento do estudo de caso da Coreia do Sul como exemplo do mais exitoso “new comer” na ordem económica internacional. O caso da Coreia do Sul interessava-nos fundamentalmente porque, devidamente contextualizado, a história interessa, ele mostrava que o discurso do obediente respeito pelas regras do livre câmbio era uma treta, quando confrontado com o realismo dos processos de transição. A Coreia do Sul mostrava-nos como fora fundamental a existência de uma política industrial agressiva, essencialmente baseada na aposta que o Estado fizera no desenvolvimento de grupos empresariais de origem familiar e que conduziu depois ao florescimento de marcas como a Samsung, a Hyundai e outras. No desenvolvimento progressivo desse estudo de caso fomos construindo evidência sobre apostas arriscadíssimas realizadas pelo modelo coreano como, por exemplo a da formação em massa de engenheiros como suporte à sua política tecnológica. E fomos percebendo que a Coreia do Sul desenvolvera também com êxito um ambicioso programa de revolução do seu perfil de especialização, com respeito pela competitividade em mercado internacional e tirando partido de uma inteligente adoção de políticas de transferência de tecnologia que a conduziu a uma presença marcante em setores como o da indústria automóvel, telecomunicações, semicondutores e tecnologias de informação e comunicação em geral.)
Quase quarenta anos passados, como o tempo voa, a Coreia do Sul permanece como um exemplo florescente de nova economia industrializada, beneficiando claramente de um contexto de transição largamente não replicável, com base num poder político musculado e que o gráfico, importado do Economist que abre este post, o ilustra com precisão.
A experiência coreana é um mundo fascinante de evidência e convite à reflexão. Tirando partido de características típicas da população asiática, designadamente a da concentração e disciplina (como o demonstram as posições sempre cimeiras que o país ocupa nos relatórios OCDE-PISA), o modelo da Coreia do Sul é um modelo virtuoso a vários níveis:
- A política industrial compensa, envergonhando os diretórios europeus que transformaram a política industrial em algo de clandestino e que nem sequer se devia pronunciar;
- Estamos perante um caso notável de alinhamento estratégico entre a produção de qualificações e a transformação estrutural da economia e do perfil de especialização;
- Ninguém trabalhou como a Coreia do Sul a relação virtuosa entre difusão de tecnologia (transferência seletiva a partir do exterior) e inovação tecnológica, construindo uma trajetória própria;
- Emergiu um modelo difícil de interpretar de articulação entre saber empresarial, conhecimento aprofundado da globalização e capacidade de decisão política por parte da administração pública, materializada em decisões arriscadas de antecipação de rumos e apostas seletivas que a serem realizadas por uma administração autista, arrogante e distante do conhecimento empresarial teria conduzido a maus resultados, o que não aconteceu;
- A Coreia do Sul é o caso paradigmático do que hoje se designa por substituição de exportações, com base numa interação progressiva e virtuosa entre transferência de tecnologia (onde quer que ela exista) e construção de uma trajetória autónoma de inovação tecnológica.
Esta reflexão tem várias consequências.
A primeira é que deveria constituir um estudo de caso paradigmático para a formação dos elementos do Ministério Público português, dotando-os de conhecimento sobre a matéria da intervenção do Estado na política industrial.
A segunda reflexão é a da replicabilidade possível do exemplo coreano para outros contextos. Não quero ser provocador, mas o desenvolvimento tecnológico observado na indústria do calçado em Portugal tem muitos traços do exemplo paradigmático coreano, com a dificuldade acrescida do nosso modelo não ter tido a servi-lo grupos empresariais com a dimensão dos coreanos, mas antes um complexo de PME que se articularam bem com o racional de uma associação empresarial representativa e competente.
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