(Veículos automóveis na Alemanha - a verde veículos convencionais; a azul claro veículos plug-in e híbridos e a azul carregado veículos elétricos totais)
(Regresso a este tema que, confesso, está progressivamente a captar a minha atenção dada a sua complexidade e relevância. Reconheço em simultâneo a qualidade do pensamento de Adam Tooze que, no seu substack, Chart Book nos traz regularmente novos elementos de evidência e reflexão para ir pensando a referida complexidade. Desta vez, é a transição energética da economia alemã que estará na berlinda. Dispenso-me obviamente de justificar a crucial importância da experiência alemã em matéria de transição energética. A guerra da Ucrânia fez abater sobre a Alemanha uma urgência de transição energética rápida, depois de Merkel ter feito parte do grupo dos “aveuglés” que pintou com cores macias a ameaça russa[1]. É assim relevante compreender como é que sob uma premente necessidade a economia alemã se tem comportado. No caso alemão, a ameaça do lobo não estava distante. Recordo os cenários catastrofistas que foram esboçados para dar conta da situação difícil em que a bonomia alemã relativamente à Rússia colocou o seu aprovisionamento energético e a qualidade de vida da população. O interesse da peça de Adam Tooze justifica-se sobretudo pelo facto de partir de uma evidência pouco comum: as emissões de gases com efeito de estufa tiveram em 2023 relativamente a 2022 uma redução de 20%. Ninguém obviamente fica indiferente ao facto de numa economia com a dimensão da alemã se produzir uma redução daquela magnitude. Porém, sob essa aparente transição rápida, escondem-se nuances que vêm ao encontro do meu ponto – a transição energética tem uma elevada complexidade e só num quadro de multi-evidência podemos compreender de facto o rumo dos acontecimentos.)
Os números apresentados por Adam Tooze têm origem no principal think-tank energético que assessora o governo alemão nesta matéria – a agência AGORA. Com a redução de 20% nas emissões de CO2, a economia alemã recuou as emissões para um equivalente de 673 milhões de toneladas de CO2, colocando-se ao nível de 1950 e a um nível mais baixo em 46% da magnitude observada quando se verificou a reunificação alemã de 1990. Face à magnitude deste número, quase apeteceria dizer que a experiência alemã mostra que as coisas sõ vão ao sítio perante uma ameaça real e a necessidade de reorientar as fontes de energia pertence a esse grupo de ameaças.
Mas estamos a falar de uma transição que é complexa e o próprio Tooze escava na informação da AGORA para o mostrar com clareza. A agência alemã mostra que redução dos 20% é essencialmente devida à quebra de produção de energia com base em carvão, o que em si constitui uma grande notícia, pois os piores cenários do impacto da guerra da Ucrânia apontavam para o elevado risco da economia alemã poder regressar e sucumbir de novo à necessidade do carvão, dada a decisão política entretanto tomada quanto ao nuclear. O que a agência alemã nos mostra é que esse risco foi superado e, precisamente, a redução dos 20% de emissões se deve à descida da produção de energia com base no carvão.
Se assim é, porquê então o ceticismo quando aos rumos efetivos da transição energética alemã?
A pergunta seguinte a fazer é esta: como é que a economia alemã evoluiu em matéria de renováveis? O ano de 2023 trouxe um novo recorde na produção de energia solar, mas a Alemanha, tal como outros países do Norte, não dispõe do mesmo potencial de exposição solar que, por exemplo, as economias do sul. Isso explica a relevância das fontes de energia eólica. Nesta matéria, a economia alemã registou também um número recorde, mas existe evidência de que sobretudo nos länder mais abastados a energia eólica tem suscitado resistências dado o seu forte impacto paisagístico. O ritmo a que a produção de energia eólica tem evoluído não é todo satisfatório, se pensarmos nas metas de 2030 e 2050 em matéria de emissões.
Mas onde a evidência fornecida pela agência alemã é muito rica de implicações respeita à decomposição da redução dos 20% de emissões em componentes explicativas. E aí uma ponta de pessimismo impera. As evidências que se destacam são as seguintes: (i) observou-se uma significativa diminuição de procura de energia; (ii) aumentou a importação de energia de países vizinhos com 46% com origem em energia eólica e hídrica e 24% de nuclear e diminui a exportação de energia alemã; (iii) verificou-se apenas um fraco aumento de produção de energia renovável, (iv) observou-se uma clara diminuição das emissões provenientes da indústria e isso porque a produção industrial de setores intensivos em energia diminuiu acentuadamente e (v) apenas se verificou uma redução de 5 milhões de toneladas com origem em eficiência energética.
Deparei com uma evidência adicional que me deixou surpreendido. O parque automóvel alemão é francamente pobre em matéria de veículos elétricos totais e de veículos plug-in ou híbridos. O gráfico que abre este post é uma evidência contundente. Se ainda tivesse dúvidas quanto à debilidade da penetração dos elétricos na Europa, os dados da Alemanha dissipam qualquer dúvida.
Para terminar uma moral da história.
Não chega seguir com atenção a redução de emissões de gases com efeito de estufa. É necessário compreender o que está por detrás dessa redução. Se é positivo que a economia alemã tenha resistido ao regresso ao carvão, a evolução estrutural que está a ser observada não permite ainda considerar que a transição energética esteja ganha e consolidada. E, para mais, a ameaça da desindustrialização precoce continua a pairar sobre a economia alemã e esse é tema para outras reflexões. A transição energética, não estando consolidada, arrisca-se a ser um dos grandes temas das eleições de 2025. Mas até lá ainda teremos um infernal 2024 de outras eleições.
[1] Aproveito para saudar, ainda que tardiamente, a referência do meu colega de bloque à obra de Sylvie Kauffmann “Les Aveuglés – comment Berlin et Paris ont laissé la voie libre à la Russie (Stock, 2023). A leitura é fascinante, sobretudo do ponto de vista do ponto de vista ilusório com que a progressiva tentativa de normalização de Putin e da sua Rússia imperial foi construída.
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