quinta-feira, 11 de janeiro de 2024

A PONTARIA DE M. CARVALHO SOBRE O DISCURSO DE ASSIS

 


(Regresso às questões da política interna sem grande entusiasmo, mas estimulado pelo artigo de hoje de Manuel Carvalho no Público, que traz para a reflexão pública uma nota que tinha escapado à generalidade do comentário político sobre o congresso do PS. A inspiração do artigo é proporcionada pela intervenção de Francisco Assis, à qual não tinha assistido, na sequência da minha grande incapacidade de seguir com pormenor os rituais dos festins partidários. Mas o tema e a interpretação de Manuel Carvalho são extremamente sugestivos e vêm na linha de algumas considerações que aqui realizei em dois posts sobre os grandes desafios a que a intervenção política do PS deve dar resposta nos próximos tempos. Nos termos da intervenção de Assis e da interpretação que o jornalista do Público lhe atribui estará essencialmente em causa a necessidade de se propor à população eleitora um conjunto muito concreto de opções e medidas que restaurem a confiança da classe média e das populações mais desfavorecidas no caráter protetor do Estado Social. Por outras palavras, algo de muito semelhante ao que aqui escrevi sobre a necessidade de desmontar a sedução que o populismo de extrema-direita está a exercer sobre essas populações, na sequência do grande descrédito que as forças políticas da social-democracia e do socialismo democrático têm vindo a manifestar junto desses grupos sociais. O problema será mais agudo noutros países europeus do que em Portugal, mas obviamente que a situação política portuguesa não é nenhum oásis )

 

Francisco Assis não é propriamente um político com grande notoriedade popular. Isso foi visível na sua candidatura gorada à Câmara Municipal do Porto. E obviamente não é um político talhado para grande presença nos festins dos rituais partidários, mais sensíveis a quem aqueça os auditórios com intervenções de oradores arrebatados. Mas isso não significa que o seu pensamento não tenha espessura e que sempre que fala ou escreve não devamos estar com a máxima atenção possível. Além disso, Assis está a realizar uma presidência do Conselho Económico e Social que tem trazido alguma notoriedade adicional aquele órgão da estrutura institucional da democracia portuguesa, o que joga a favor da qualidade da sua intervenção democrática. Aliás, não terá sido por acaso que causou tanta controvérsia o apoio de Assis a Pedro Nuno Santos. Se se tratasse de uma outra qualquer personagem política sem relevância, teria passado despercebida a sua posição. Não faço ideia e não tenho qualquer informação privilegiada sobre a matéria se está certa a alusão que surgiu nos jornais de que Assis contemplaria uma candidatura presidencial. A confirmar-se, seria coerente com toda a sequência de pronunciamentos atrás referida.

Mas o tema de post de hoje é o sublinhado que Manuel Carvalho realiza do significado da intervenção de Assis no Congresso que segundo ele teria passado relativamente despercebida, provavelmente porque a maioria dos delegados presentes ou a não teria compreendido, ou estaria simplesmente à espera de mais arrebatamento e menos reflexão.

Segundo Manuel Carvalho, a intervenção de Assis “retirou o PS da esfera paroquial de mero procurador dos funcionários públicos ou dos pensionistas para falar do Estado social e da crise da classe média”.

Esta interpretação vem na linha da minha preocupação em salientar o diferente contexto político em que se discute a alternância democrática em Portugal, materializada na opção de proporcionar ao PS uma tentativa de correção de trajetória ou de abrir a possibilidade do regresso da direita democrática ao poder.

O problema central que as democracias europeias estão a enfrentar, e a portuguesa não será exceção, radica no facto de parte das classes trabalhadoras e das classes médias estarem a ser seduzidas pelos apelos do nacionalismo populista e antidemocrático e desconfiarem profundamente da capacidade do modelo de estado social democrático resolver as suas insatisfações e frustrações. O grau de assentimento a essa sedução é diferenciado consoante os países e as coligações políticas que estão no poder. A resposta a este risco sério das sociedades democráticas não é concretizável apenas a partir de um modelo económico claramente redistributivo, que mitigue e suspenda a deriva de desigualdade que atravessa a generalidade das sociedades ocidentais. Tal como o referi em posts anteriores, pelo menos em dois, o reencontro com a resposta dos serviços públicos é uma dimensão fundamental. Sabemos bem que com o enviesamento da comunicação social, sobretudo televisiva, e o caráter descontrolado das redes sociais existe por vezes um gap elevado entre a perceção do estado da arte dos serviços públicos e o desempenho efetivo desses serviços. Neste aspeto, cabe à informação pública publicar atempadamente informação rigorosa e contextualizada sobre esse desempenho, apresentando sempre um contraponto fiável à perceção alarmista que vai grassando e que é sempre matéria de aproveitamento político.

Continuo a defender que a grande medida dos governos de António Costa, e isso não ofusca resultados relevantes como o foi a significativa redução do abandono e insucesso escolar, foi a medida da redução dos preços dos passes de circulação em transporte público, com incidência primordial nas duas áreas metropolitanas. O impacto real que essa medida provocou nas condições de vida de uma larga parte da população que tem de realizar longas deslocações casa-trabalho foi de largo alcance. Tenho testemunhos pessoais concretos dessa realidade. E isso explica, na Área Metropolitana do Porto, a enorme revolta provocada pela impreparada reorganização das empresas de transporte público, sobretudo em Vila Nova de Gaia, a qual joga em desfavor de um Presidente de Câmara que não tem acertado uma nos últimos tempos, contrariando a sua conhecida prosápia.

A avaliação de impacto da medida daria resultados inequívocos e fornece orientações preciosas para alargar a ideia a outras dimensões do estado social. Obviamente, que as questões do SNS, da justiça e da resposta às exigências da educação pós-pandemia (materializadas, por exemplo, na má classificação dos estudantes portugueses no último relatório PISA) constituem matérias imperiosas para seguir o farol que a medida dos transportes públicos nos anuncia. Penso que o PS deveria realizar um debate amplo e sem restrições sobre a bondade da criação da figura do CEO do SNS. Não fui um grande entusiasta da medida, mas dei-lhe o benefício da dúvida e esperei por algum tempo de maturação. É verdade que a avaliação da medida é irreversivelmente dificultada pelo facto dela ter coincido com o pior momento em termos de insatisfação dos médicos e de barganha salarial. O contágio de ruído que esse contexto provocou dificulta seriamente a avaliação da medida. Estou com curiosidade acerca do modo como o programa eleitoral do PS vai se posicionar quanto ao modelo de CEO.

Em resumo, a preocupação de Assis em vincar o tema da insatisfação das classes médias e abordá-lo a partir de uma revalorização do estado social, na configuração e dimensão que em Portugal é possível atribuir-lhe tem o meu apoio. Mas isso não pode fazer-se apenas com discurso inflamado. São necessárias medidas emblemáticas concretas. E aqui, mantenho-me na minha, os transportes públicos anunciaram o caminho.

 

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