(Tenho para mim, e já o escrevi repetidas vezes, que o António Guerreiro é um dos nossos intelectuais mais sólidos e provavelmente aquele cuja leitura exige mais de nós, atendendo sobretudo à densidade do que e como escreve. As suas crónicas no ÍPSILON no Público das sextas feiras e as manifestações da sua presença como editor da ELECTRA, a revista da Fundação EDP, constituem evidência sólida do que estou a antecipar. A sua crónica desta última sexta feira confirma esse padrão divulgando aos leitores nacionais a perspicácia antes do tempo ou precoce, 1990, do filósofo francês Gérard Granel. Aguardo com curiosidade que a Amazon França me faça chegar a casa os seus ÉTUDES publicados em 1995, à qual Guerreiro faz menção, na qual poderemos recuperar uma conferência proferida pelo autor francês na New School for Social Research de Nova Iorque. O que justifica então esta redescoberta que António Guerreiro realiza dessa conferência? Não só o título da conferência anunciava já muita coisa, “Os anos 30 estão diante de nós”, como é de facto impressionante que Granel, no momento em que o muro de Berlim está a ser derrubado, gente diversa seguia a errada antecipação de Fukuyama que a história tinha sucumbido e o mundo vivia as aconchegadas perspetivas de afirmação irreversível da democracia à escala mundial, se atrevia a colocar os acontecimentos dos anos 30 no horizonte das suas preocupações.)
Sem querer por agora estabelecer com rigor a sequência de acontecimentos que se desenvolveram desde a queda do muro de Berlin e os mecanismos que terão operado até ao espetro atual de reacendimento das ambições e derivas antidemocráticas, nacionalisto-populistas e autoritárias, é ineludível que o mundo ocidental democrático está perante ameaças que nos fazem inevitavelmente pensar que a História poderá repetir-se.
Isto não significa, em meu modesto entender, que o padrão evolutivo dos anos 30 e da ascensão nazi ao poder possa repetir-se como que uma reedição da história. Mas o que parece indiscutível é que a tão propagada resiliência e robustez das instituições democráticas pode esconder uma outra evidência, a da imensa fragilidade dessas mesmas instituições, agravada pela irresponsável maneira como pressupusemos essa robustez e deixámos de cuidar da sua saúde e sustentabilidade. Tudo se passou como se nos tivessem alertado para a existência de instituições à prova de bala e nos tivéssemos entretido a criar condições para a sua fragilização. A falta de robustez desse discurso é evidente a propósito do que se tem passado de mais recente em duas sociedades às quais atribuíamos a maior fortaleza das instituições democráticas.
Nos EUA, um louco ganancioso orquestrou na prática um ataque ao coração da democracia americana e arrisca-se a conquistar a sua reeleição e as instituições de contrapoder estão pelas ruas da amargura, a começar pelo Supremo Tribunal de Justiça, já infiltrado pelo mais desavindo tradicionalismo. No Reino Unido, ao qual associamos a mais antiga democracia do mundo, a incapacidade das instituições democráticas em assegurar a largas franjas da população condições mínimas de estabilidade e proteção social e o descrédito do BREXIT anunciam o pior.
É discutível que Granel tenha razão e que um padrão similar ao dos anos 30 se perfile sem mácula e diferenças no nosso horizonte próximo. Mas o que parece indiscutível é que o caminho para uma democracia desqualificada e em que a direita se aproximará mimeticamente dos desmandos de ideias e de propostas da extrema direita se afigura um cenário com elevadíssima probabilidade de concretização. Nem sempre de acordo com o seu pensamento, tenho de concordar que Daniel Oliveira é talvez aquele que tem formulado melhor esta deriva.
O cenário em curso tem a servi-lo uma desigualdade de condições que importa considerar no sentido de a mitigar o mais rápida e robustamente possível.
A extrema-direita antissistema não precisa objetivamente de apresentar propostas credíveis ou viáveis. Limita-se a explorar o descontentamento real ou simplesmente produto de perceções comunicacionalmente enviesadas. Trata-se de abanar o sistema democrático, trabalhar os reflexos condicionados de uma direita incapaz de se reinventar, aproximar-se do poder, exercendo-o por interpostas forças políticas, fazendo com que essa mesma direita clone as suas ideias ou então assumindo elas próprias a governação.
Para mal da Europa e dos EUA, começam a existir evidências concretas para estudar e seguir este modus operandi. Uma força política amante dos tempos e da política de Mussolini e uma assumida nostálgica do fascismo governam a Itália e vemos continuadamente uma Meloni sorridente entre os seus parceiros no Conselho Europeu, como se estivesse entre pares. Entretanto, apesar da Constituição italiana proibir o direito de reunião aos fascistas, vimos como grupos neofascistas contornaram essa regra e coniventes ou não com a nostalgia de Meloni organizaram uma manifestação pública despudorada em Roma com exposição de saudações e suásticas nazis. Nos EUA, um político amante da adulteração da democracia pode assumir a administração americana com o maior desplante, enquanto o Partido Democrata se degrada e divide seduzido pelas vinganças do wokismo mais descabelado e descontextualizado. Na Alemanha, a AfD, extrema-direita alemã já evidencia uma força eleitoral superior à do SPD cujo líder chefia o Governo alemão.
É verdade que, na Polónia, as forças democráticas comandadas pelo europeísta Tusk resistiram à deriva e quebraram a permanência dos tradicionalistas e conservadores. Na Hungria, espera-se que algo de similar possa emergir. Mas sabemos também que, em França, Marine Le Pen está à espreita e uma sensação de algum abismo percorre-nos o pensamento quando percebemos que a barragem ou dique se chamam Macron. Poderíamos falar também dos Países Baixos. E mesmo em Portugal todo o democrata se interroga quanto aos riscos em que o PSD incorre se o seu capital eleitoral se encolher para lá do admissível, cedendo mimeticamente ao Chega.
Perante a intensidade e generalização destas derivas, mesmo que possamos discordar da antecipação de Granel e do seu conceito de “condições essenciais” para que um padrão histórico possa repetir-se, confundindo assim condições com causas, importa politicamente projetar ações possíveis. Ideias simples e de intervenção concreta para um grande “rassemblement democrático” (até esta expressão a extrema direita francesa usurpou com a nova designação do partido de Le Pen, Rassemblement National), capazes de ir além da simples retórica política. Ideias e propostas que se traduzam em mudança de condições de vida e que sirvam de contraponto a meras manobras de agitação antissistémica. Mas desse tipo de medidas já falei em posts anteriores.
E, por favor, interpretem o que está a passar-se nos EUA como uma grande lição a não repetir. Centrar a ação política no wokismo mais rudimentar constitui desesperadamente uma forma de estupidez política. Que poderá pagar-se caro, muito caro.
“History matters”.
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