Já aqui há dias me referi a Ana Sá Lopes (ASL) como uma jornalista capaz, porque competente e imaginativa, e corajosa, porque voluntarista e afoita. Encontramos hoje a sua assinatura em duas peças do “Público” que nos remetem para questões que marcam a paupérrima atualidade portuguesa: numa crónica (“Não pesam na consciência de Montenegro as mortes no INEM?”), arrasa a reação do primeiro-ministro ao caso das mortes alegadamente ligadas a falhas do INEM e, por conseguinte, da responsabilidade da(s) sua(s) tutela(s); num outro texto (“A decadência da social-democracia e um PS agarrado ao ‘espírito do tempo’”), socorre-se de Paulo Pedroso (PP) para refletir sobre a crise das sociais-democracias e justificar as opções e hesitações de Pedro Nuno Santos (PNS).
A questão do INEM é realmente tratada de modo arrasador. Vejam este precioso excerto: “O que são os mortos do INEM perante esse projeto grandioso que é Portugal? Um ponto e vírgula numa história milenar para cujo sucesso Luís Montenegro vai – não sei se acredita mesmo nisso, mas acha conveniente dizer – contribuir. A frase é um triste resumo da nossa desgraçada praia lusitana: ‘Eu quero que todos saibam que, apesar de estarmos preocupados e a resolver esse problema [INEM], há um projeto muito maior do que esse para resolver em Portugal. É o projeto de nós acreditarmos no nosso país, de nós acreditarmos que conseguimos construir mais oportunidades, que conseguimos gerar mais riqueza.’” E este não menos precioso final: “O INEM não funciona, mas se mudarmos de assunto, defende Montenegro, ‘damos esperança’ a Portugal. Não é exatamente a versão rural da frase de Maria Antonieta ‘não têm pão, comam brioches’, mas é andar a brincar com a tropa.” Fica tudo dito, e bem-dito, apesar de a ministra Ana Paula Martins ainda hoje ter declarado com a convicção possível que se levanta todos os dias para cumprir a sua missão de governante porque “a minha missão é dar resposta a problemas e é isso que estou a fazer”. E quando assim é, mesmo dada a improbabilidade de um happy ending, as pessoas insistem, insistem, insistem na esperança vã de que com elas o final venha a ser diferente.
A questão da crise social-democracia, e especialmente da sua derivação lusitana, constitui algo de mais complexo ou menos cristalino. Em termos estruturais, ASL cita PP para sustentar quatro argumentos: (i) que o PS dos governos Costa, mau grado a constituição da “geringonça” em 2015, criou a imagem de “um partido centrista, orçamentalmente responsável”, afastando-se das grandes causas da esquerda e tornando agora visível que “o PS apostou no congelamento do Estado Social para garantir a sustentabilidade da sua estratégia económica”; (ii) que PNS, “com todos os seus defeitos”, tem noção da crise das sociais-democracias e “tem uma visão do papel do PS junto do eleitorado tradicional das classes médias”, procurando “prevenir a transferência do eleitorado para a direita”; (iii) que PNS “está preso” a duas contradições, a de não se demarcar do legado de António Costa segundo a qual “o PS foi vitorioso por causa da ‘gestão responsável’ do Estado” e a de “pertencer a uma geração de dirigentes socialistas que só conheceram o poder e tremem com a ideia de ficar na oposição por muito tempo”; (iv) que, consequentemente, há a tentação no PS de aceitar que “se o discurso é localmente ganhador, não se pode diabolizar”, ou seja, que está entre os socialistas consolidada “a ideia de que o PS não pode afastar-se do espírito do tempo”, sendo que “Ricardo Leão [que PNS não quis deixar cais] é o protótipo do estado de espírito de muitos autarcas por esse país fora. Há o sentimento de que o poder autárquico é a alavanca para o regresso do PS ao poder e isso tem que ser feito com um discurso que se adapte ao espírito do tempo.”
Pessoalmente, não estou certo de concordar com todos os pontos acima mencionados, mas tal não se me afigura muito relevante na medida em que vejo as dificuldades da atual liderança do PS bem a montante daquela dimensão estrutural – refiro-me, por exemplo, às “cambalhotas” que têm caraterizado o seu posicionamento titubeante e até errático em sede de aprovação ou rejeição do OE para 2025. A última cedência de PNS centra-se agora no seu dito por não dito quanto à aceitação da descida de um ponto percentual do IRC (com a agravante de dar a impressão de o fazer para evitar uma situação em que PSD e Chega votassem juntos uma redução de dois pontos percentuais), assim incompreensivelmente se preparando para viabilizar na especialidade o que o levou a recusar um acordo com o PSD na generalidade. Em conformidade com este estado de coisas, não há mesmo “espírito do tempo” que possa resistir a tanta guinada (lembro o “é praticamente impossível” de janeiro passado e a miríade de sucessivas declarações que se lhe seguiram até à abstenção de 31 de outubro) nem qualquer discussão em torno que possa ter provimento ou efeito útil. E quando assim é...
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