(A idade e o catarro ocasional de facto não perdoam e a intensidade de trabalho e as sucessivas viagens para Lisboa têm-me afastado de uma atividade mais regular de escrita neste espaço. Talvez haja uma outra razão subliminar nessa fraca assiduidade e essa está na pobreza da política interna. Ela pode ser percebida de várias formas e seguramente uma delas é estar atento ao tipo de debate político que se vai fazendo nos jornais e nas televisões e, santo Deus, tanta gente há por aí a ganhar a vida ou a completá-la com essa atividade. O deslumbramento de Montenegro é pavoroso, sobretudo no que ele significa de tentar desenhar uma agenda para responder ao eleitorado do Chega. A deriva securitária, trabalhando as perceções da insegurança e procurando fazer passar uma imagem de gravitas na governação que chega a ser ridícula, dá comigo em doido e a social-democracia parece cada vez mais um arquétipo inatingível por esta camada de políticos a quem o PSD está entregue por estes tempos mais próximos. À esquerda o panorama não é mais entusiasmante. Das Presidenciais nem falar. Imagino-me no calvário de ter de eventualmente escolher entre Mário Centeno e António José Seguro, embora o nome de Augusto Santos Silva venha colocar alguma pimenta nesse universo, veremos se corresponderá ou não a um posicionamento real e de Mulheres para Presidente ninguém fala o que é uma verdadeira lástima. Quanto à controvérsia do 25 de novembro, o PS perdeu uma excelente oportunidade de trabalhar a questão dos desvios do radicalismo da esquerda militar que nos poderia ter custado caro, acaso não houvesse no grupo dos Nove gente com a lucidez de Melo Antunes para interpretar corretamente a situação política criada por esse radicalismo e suster de vez a tentação que passou pela cabeça de alguma direita da altura de fazer reverter os avanços do 25 de abril de 1974. Com a exceção de Pacheco Pereira que assinou sobre a matéria uma das suas melhores crónicas de sempre, fazendo jus ao seu estatuto de historiador contemporâneo de mente aberta, praticamente ninguém trabalhou esse filão.)
É de facto uma dor de alma ir assistindo ao modo como os tresloucados do Chega comandam a agenda política do Governo que não hesita em utilizar as forças de segurança para marcar a agenda mediática, cavalgando até à exaustão a onda securitária. A deriva da cópia, como lhe costumo chamar, ofusca alguma boa prática da governação, como por exemplo a honesta decisão do Ministro da Educação Fernando Alexandre vir a terreiro reconhecer que errou na apresentação dos números relativos ao número de alunos que está sem aulas, comunicando solenemente que os números apresentados pelo organismo da tutela não eram fiáveis. Fica sempre bem a um governante a perspetiva do rigor, mas já agora permanece a curiosidade de saber a razão dos números não serem fiáveis. Até aqui os números da Educação costumavam ser venerados pela sua fiabilidade. Com esta informação e anúncio de uma auditoria sobre o assunto fico inquieto, até porque em termos profissionais e sobretudo na minha qualidade de avaliador de políticas públicas, incluindo as de educação e formação, ter segurança nos dados é crucial.
Em matéria de saúde, a situação começa a cheirar a pântano, Ministra e Secretária de Estado parecem envolvidas em lios sucessivos. E para apimentar ainda mais as coisas, o que se vai passando na Ordem dos Médicos e em torno dos presumíveis conflitos de interesses de Eurico Castro Alves, um nome incontornável em tudo que tem sido controverso a norte do Mondego em matéria de saúde, anunciam-se pormenores interessantes nos próximos capítulos.
Regressando aos temas à esquerda, a perceção de que o deserto de ideias ameaça horizontes futuros começa a ser demasiado forte para ser ignorada.
Eu sei que os chamados “intelectuais” estão fora de moda e que a própria esquerda foge deles como o diabo da cruz, por isso estou curioso que remake Pedro Nuno Santos pretende fazer da ideia dos Estados Gerais de Guterres. Mas como não alinho nestas mortes precoces, aqui estou eu a trazer-vos uma longa citação de um dos últimos moicanos dessa intelectualidade, o sempre perspicaz e denso António Guerreiro, na sua crónica de hoje no ÍPSILON, suplemento do Público. Palavras sábias:
“(…) Podemos reconhecer como bastante plausível a hipótese de que a esquerda está bloqueada e sofre de um deficit. Manifestando alguma incapacidade de produzir narrativas, de contar histórias à altura das necessidades da nossa época, as suas bases vão-se convertendo, como mostram por todo o lado as eleições, às histórias simplistas que lhes são contadas por ativos recitadores neoliberais, neoconservadores ou até neofascistas. Há razões muito plausíveis que explicam o desânimo actual da esquerda e a contracção do “imaginário” que lhe garantia a capacidade de se renovar: o capitalismo extremo tornou muito difícil, ou até impossível, juntar sensibilidades, sentimentos, evidências, esperanças, reivindicações. Há uma lógica implacável na organização do trabalho e da vida social que faz com que cada um viva uma experiência isolada. Diminuíram drasticamente as condições de possibilidade de criar uma força colectiva de participação partilhada. Quando a direita, hoje, acusa a esquerda de ter substituído a “luta de classes” pelos conflitos identitários está a estender-lhe uma armadilha, a querer indicar-lhe como lugar legítimo aquele que já não existe ou que, pelo menos, já não pode ser frequentado da mesma maneira nem sequer análises e acções clássicas.
E assim chegámos a uma nova versão da “melancolia da esquerda” cujos sintomas resultam da introjecção narcísica do desejo por um objecto inexistente, fantasmático, É, em termos freudianos, uma perda imaginária (ao contrário do luto, que é o “trabalho” de superação de uma perda real), fazendo entrar o indivíduo na cena onírica e contemplativa dos fantasmas.”
Uma bela reflexão para o fim de semana, se alguém estiver para aí virado ou se as insónias atrapalharem.
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