(Tal como ao meu colega de blogue as eleições americanas não me saem da cabeça. Não porque não tivesse antecipado essa possibilidade, sobretudo depois de ter percebido a inação do Partido Democrata em ter inicialmente aceite a candidatura de Joe Biden. Mas não apenas por isso. Sobretudo porque a ação política do partido se deixou enredar nas múltiplas tentações do wokismo e problemáticas laterais, quando perdia o contacto com os grandes problemas das classes trabalhadoras americanas, não rotinadas com os problemas da inflação, não interessa agora saber os fatores que a determinaram. Mas a questão fundamental que está por detrás da referida obsessão com os resultados das eleições americanas está mais na sensação estranha de assistir a um novo tempo longo da política, guiado por critérios que são estranhos à minha formação democrática, acompanhada de uma outra perceção, mais dolorosa, de que que provavelmente a superação deste período que se antecipa negro já não será para o meu tempo de vida. O patrono que inspirou a minha participação neste blogue, Albert O. Hirschman, deixou-nos páginas brilhantes sobre a forma como a deceção política abre regra geral caminho a períodos mais ou menos longos de prevalência do interesse privado sobre o interesse público e bem comum. Creio que se Hirschman fosse hoje vivo teria a inteligência de reinterpretar as suas próprias teorias sociais, sobretudo porque este período de deceção política não acontece depois de uma gloriosa fase de defesa do interesse público e de problemas na sua renovação, mas antes durante uma fase estranha em que o papel da tecnologia na comunicação tem vindo a alterar radicalmente o modo de fazer política e a possibilidade de renovar o interesse público em democracia. Por isso, a concentração de poder nos donos e senhores dos grandes conglomerados tecnológicos que se agruparam todos em torno da mensagem de Trump, não necessariamente com o espalhafato e despudor de Elon Musk, é ferozmente perigosa, ainda por cima com o apoio popular que sustentou uma vitória tão retumbante como a de Trump.)
Pedro Adão Silva tem hoje uma sugestiva crónica no Público de hoje, na qual invocando Leonard Cohen e Pier Paolo Pasolini, admite que possamos estar perante um futuro promissor para o pessimismo social como forma predominante de reação perante a destruição de uma ordem política e o aparecimento de uma outra, na qual temos dificuldade em situar a nossa intervenção possível. A metáfora do desaparecimento dos pirilampos que PAS retoma de um dos últimos escritos publicados do grande escritor e cineasta italiano é também uma metáfora sobre o genocídio cultural e ameaças do totalitarismo, hoje mais insistentes do que no período em que o artigo surgiu no Corriere della Sera. É discutível se o pessimismo é necessariamente uma forma de conservadorismo. Estou de acordo com PAS quando ele refere que esse pessimismo social não é necessariamente sinónimo de “resignação fatalista” ou de “pessimismo cultural, de teor conservador ou reacionário”. Creio que existem outras formas de pessimismo mais ativo e organizado e que podem conduzir não só a formas de resistência (como referia Robert Reich, mencionado no meu penúltimo post), mas a ponderadas reflexões coletivas sobre como dar a volta à situação e impedir o pior.
Sabemos que a sociedade americana tende a fazer emergir a tese de que se a política não for “local” conduzir-se-á ela própria à irrelevância. Ou seja, se a política ignorar os problemas concretos da gente real, por mais diversas que se apresentem e por mais complexa que seja a sua coordenação, diz-se que está condenada ao fracasso. Terão os Democratas ignorado essa política local? Em contrapartida, os seus avanços cavalgando o wokismo mais diverso parecem ter pelo contrário tentado indevidamente generalizar dimensões provavelmente excessivamente locais para ter uma ação política consequente.
O problema existe e não é fácil de superar. Mas creio que continua a existir espaço para uma reinvenção da convergência possível entre a tal “política local” e das preocupações das pessoas concretas e princípios globais e transversais de ação política que sejam capazes de permitir, na ação coletiva, o reconhecimento identitário dos tais problemas pretensamente ignorados ou desvalorizados.
De facto, o pessimismo ativo e organizado não é sinónimo necessariamente de inação. Antes pelo contrário, é esse pessimismo que permitirá relançar as bases para o contra a corrente que se impõe e sobretudo não deixar cair o sentido crítico das coisas e das soluções afuniladoras da complexidade social que vão muito provavelmente avançar.
Relembrando as palavras do patrono da minha participação neste blogue, Albert O. Hirschman:
“(…) Um certo movimento de ida e volta entre a vida pública e a vida privada pode revelar-se saudável, tanto para os indivíduos, como para o essencial da sociedade. Mas tais oscilações podem como é evidente assumir proporções excessivas. E esse é o caso das nossas sociedades: eis enfim a tese moral que está implícita na minha análise. As sociedades ocidentais parecem condenadas a longos períodos de privatização, em que conhecem uma empobrecedora “atrofia dos valores públicos”, seguidas de explosões espasmódicas de sentimentos públicos pouco suscetíveis de serem construtivos. Como remediar esta atrofia e estas convulsões? Como poderemos introduzir uma preocupação mais estável dos assuntos públicos e de “verdadeiras celebrações públicas” no nosso quotidiano? Como é que poderemos aprender a defender as causas públicas com entusiasmo, mas sem o frenesim e as esperanças milenárias que conduzem infalivelmente ao fracasso e à deceção geral?”
Escrito em 1982, Shifting Involvements. Private Interest and Public Action. Princeton University Press. Consultada a versão Francesa de 1983 Bonheur Privé, Action Publique, Fayard, páginas 225 e 226.
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