sábado, 23 de novembro de 2024

SIM, DEMOGRAFIA AINDA E SEMPRE, MAS NUMA PERSPETIVA MAIS GLOBAL

 

(Decididamente, o país não atina em desenvolver uma abordagem coerente ao desafio do declínio demográfico. Continua a não prestar a atenção devida ao comportamento da taxa de fertilidade, sobretudo no contexto de mulheres cada vez mais qualificadas e com processos de profissionalização e entrada no mercado de trabalho cada vez mais exigentes. Um bom exemplo dessas dificuldades é a importante referência que foi realizada sobre o desafio do declínio demográfico no Acordo de Parceria para o período de programação com horizonte 2030 e a muito deficiente operacionalização dessa abordagem no quadro dos Programas regionais e nacionais temáticos do PT 2030. O programa PESSOAS 2030 que se chama mesmo Demografia, Qualificação e Inclusão fica, por exemplo, bastante aquém de uma abordagem compreensiva e coerente a esse desafio. Mas a principal limitação que vejo em tudo que tem sido discutido sobre o tema é uma certa incapacidade de ir um pouco além da nossa costumeira e pretensa especificidade. Ou seja, incapacidade de perceber que estamos perante um problema global, que já não é apenas dos países da Europa do Sul, Portugal, Espanha e Itália que apresentavam bem há pouco tempos das mais baixas taxas de fertilidade total do mundo, números que poderiam inspirar aos mais afoitos nas questões especulativos a ideia de que poderia haver algum problema com espermatozoides por este lado do mundo. Como veremos, com exceção da África, o recuo na taxa de fertilidade é de facto impressionante. Se pressupusermos que este contexto vai influenciar em grande medida o comportamento da emigração-imigração no mundo, não é difícil concluir que a concorrência pela atração de imigrantes vai ser dura, o que é tanto mais paradoxal quando o populismo político que grassa por aí tem no combate à imigração um dos seus principais combates. Este mundo está louco e parece ainda não ter compreendido que está a mingar e, que estando nessa posição, se abre uma grande interrogação sobre a capacidade de manter os níveis de bem-estar material a que muita gente está habituada.)

Aproveito para juntar às minhas próprias reflexões sobre o tema um importante artigo de Noah Smith que acaba de ser publicado no seu substack. O artigo designa-se provocatoriamente de “Ninguém sabe como parar que a humanidade continue a mingar”. E não menos lucidamente Smith interroga-se por que razão ninguém fala sobre este importante problema. É exatamente isso que penso. Até agora todos fazem umas cócegas ao problema, criam grupos de trabalho a esmo, mas a verdade é que o panorama que está diante de nós é ameaçador e não será seguramente o facto da África ser o único continente que terá três ou quatro décadas até que mingue também que nos vai resolver o problema. Mas já agora, ignorar que a transição demográfica em África vai continuar a fazer disparar a emigração africana será de uma cegueira absoluta.

Falar da ainda exceção africana obriga-nos a reconhecer que se a África tem ainda algumas décadas de potencial demográfico isso é porque se trata do continente em que a progressão do desenvolvimento económico foi mais lenta. Acaso tivesse sido mais rápida e já a taxa de fertilidade das mulheres africanas estaria a descer a ritmos bem mais acentuados dos que estão a ser registados. Parece um paradoxo, mas não é. Sim, é essencialmente o desenvolvimento económico e social que traz o declínio demográfico, pois rebaixa a taxa de fertilidade e as melhorias sociais e sanitárias rebaixam a mortalidade e fazem com isso acentuar o envelhecimento da população.

Se compararmos os dois grandes problemas das sociedades modernas, a ameaça climática e o declínio demográfico, ambos sombrios, a verdade é que a evolução do preço da energia renovável traz-nos esperanças, que o declínio demográfico não tem encontrado.

A evolução demográfica tem sido rápida e impressionante e o número de países com taxas de fertilidade abaixo dos 2,1 que é o número mágico da reprodução simples das sociedades é assombroso, passando os próprios EUA a partir de 2008 também a engrossar esse grande contingente, sobretudo porque a taxa de fertilidade na população hispânica desceu a ritmos impressionantes.

Tal como sucedeu em Portugal, em que se presumia que a taxa de fertilidade descesse menos em territórios rurais e em que a influência da Igreja fosse mais determinante, também no mundo não é a religião que tem impedido a descida continuada da taxa de fertilidade, como o observado, por exemplo, na população islâmica. Admirados? Admito que sim, sobretudo quando vemos as curvas de evolução da taxa de fertilidade em países como o Afeganistão, a Arábia Saudita e o Irão (ver gráfico Our World Data abaixo).  

Não vos vou maçar com os efeitos que este fenómeno de uma população a mingar terá sobre o crescimento económico, a evolução da força de trabalho e da produtividade aparente do trabalho. O ponto em que queria insistir está já apresentado. Estamos a falar de uma tendência transversal a todo o mundo e mesmo, como já anteriormente referi, o continente africano partilhará mais tarde ou mais cedo, direi em função do seu nível de desenvolvimento económico, esta tendência.

Talvez fosse sensato encarar de vez o comportamento da taxa de fertilidade como um fenómeno societário que exigira a integração de diferentes abordagens e políticas. E talvez ainda fosse mais sensato olhar para o progresso tecnológico de outra maneira. Até aqui, sobretudo nos momentos de crise e de desemprego mais generalizado, a ameaça tecnológica foi sempre perspetivada como uma ameaça acrescida ao desemprego. Relembro que tais suspeições infundadas no longo prazo foram construídas em contextos de crescimento demográfico e não de populações a mingar. O contexto alterou-se totalmente. Em contexto de rarefação progressiva da força de trabalho não será de reequaciona essa ameaça e, pelo contrário, encontrar na revolução tecnológica um dos antídotos para o inverno demográfico que ameaça generalizar-se por todo o mundo?
 

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