terça-feira, 5 de novembro de 2024

UMA PERGUNTA INCÓMODA

 

(Os acontecimentos trágicos na Comunidade Valenciana e a ira descontrolada que a perceção da Comunidade ter sido abandonada durante alguns dias à sua sorte madrasta gerou maioritariamente na população indefesa, visível na humilhação a que as estruturas do Estado, o Governo central, o da Comunidade e a Casa Real foram submetidas, sem dó nem piedade, na sua visita à localidade mais atingida, já foram abundantemente noticiados pelas televisões e jornais portugueses. Dispenso-me, por isso e por uma questão de pudor, de comentar a própria tragédia. Por outro lado, há que lamentar a falta de tato político em realizar aquela visita sem uma preparação mínima, sabendo sobretudo que a extrema-direita espanhola do VOX não olha a meios e está seguramente a trabalhar a ira e a raiva populares. O poder, qualquer que ele seja, não pode ser humilhado na rua, isso é das piores coisas que podemos fazer a uma democracia já de si frágil e vulnerável a toda a família de aproveitamentos políticos de tragédias e do abandono a que por vezes as populações são submetidas. Depois, não pode deixar de reconhecer-se que o Estado espanhol está no seu pior momento para acorrer célere e de forma competente às necessidades de uma tragédia, atendendo sobretudo ao clima de polarização em que a sociedade e a política espanholas estão mergulhadas. Mas a minha pergunta incómoda não incide sobre esses aspetos. Incide pelo contrário sobre uma dimensão que me interessa de sobremaneira que são os modelos da governação e da coordenação territoriais. E a minha pergunta incómoda, mas urgente e necessária, é a seguinte: a governação multinível funcionou?)

Curto e grosso, com a maior das frontalidades possíveis, direi simplesmente que a governação multinível não funcionou. Aliás, tal como já não tinha funcionado em plena pandemia em Espanha quando, por exemplo, comparada com o outro nível de governação em Portugal, onde o ataque à pandemia funcionou bem melhor.

Esta conclusão é fundamental que seja apreendida e devidamente estudada e não pode ser atirada para uma zona de esquecimento, simplesmente porque é uma questão incómoda e pode dar azo a que os fanáticos da centralização peguem no assunto e glorifiquem as estruturas centralizadas. De facto, a relação governo central, Comunidade Autónoma, ayuntamientos (mesmo que de muito pequena dimensão ao pé dos portugueses, não funcionou. Ponto. Com graves danos para as vidas humanas e para o bem-estar e segurança das populações. Em primeiro lugar, porque quando se fala de governo central, não estamos a falar de uma entidade única, mas de uma miríade de entidades que deveriam ter intervindo na tragédia. A administração central tem ela própria um problema sério de coordenação, como regra acontece nas tragédias à portuguesa. Esses problemas de coordenação adensam-se e complexificam-se quando passamos para a governação multinível, gerando o caos decisional, sobretudo quando a dimensão do problema não está previamente testada, como foi o caso da DANA, mas também de alguns incêndios e o foi no passado a dimensão da pandemia.

Nós, os adeptos da governação multinível num contexto de decentralização, sabemos que não há bela sem senão e que a governação multinível tem custos de coordenação e, como os economistas costumam designá-los, de custos de transação. Devo admitir que, alguns de nós, embora não seja o meu caso, tendem a desvalorizar esses custos de coordenação e de transação, sobretudo porque pensam em contextos de cruzeiro, não em emergências climáticas ou de terror. Pois em meu entender, penso que na minha leitura, a governação multinível tem de ser reavaliada face à regularidade com que fenómenos deste tipo tenderão a acontecer no futuro próximo. Será assim fundamental que não façamos como o pobre do macaco que se afoga no rio sem tentar esbracejar e buscar o impossível – conseguir nadar. Acaso o façamos, seremos presas fáceis da lógica centralista que nos comerá como a coelhos indefesos perturbados com uma iluminação artificial qualquer.

O que quer isto dizer é que a governação multinível deve ser profundamente trabalhada e submetida a testes de stresse. O novo normal das tragédias climáticas está aí à porta, sobretudo em resultado de um urbanismo desenfreado e sem regras. Como me dizia, hoje, um amigo próximo, os rios e os cursos de água têm memória. Quando possuídos pela fúria de uma tragédia, tendem a procurar os espaços por onde passaram no passado, levando tudo à sua frente, como na Comunidade Valenciana.

Quem pensar e/ou trabalhar a governação territorial e ignorar este alerta, aconselho-o, enquanto é tempo, a abandonar a profissão.

 

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