(O Serviço Nacional de Saúde passa por momentos conturbados como se ele próprio vivesse efeitos de um COVID qualquer a longo prazo, parecendo não ter conseguido recuperar do stresse e pressão a que foi submetido durante o período pandémico. Os problemas do SNS giram sobretudo em torno de uma dramática ambivalência para a qual os governos da última década não conseguiram encontrar o equilíbrio certo. Por um lado, padece de um subfinanciamento que já pode ser considerado crónico, mas por outro tem sido objeto de uma progressiva alocação de recursos orçamentais, sugerindo a existência de sérios problemas de eficiência e de gestão, visíveis quando comparamos algumas unidades hospitalares. Tudo isso acontece, como sabemos, num contexto em que os regimes de seguros privados e a própria ADSE e outros sistemas de saúde do tipo continuam a alimentar um setor privado, que já não pode ser retirado da equação, por muito que isso custe aos defensores dos serviços de um SNS generalizado e gratuito. Quer isso significar que os anteriormente referidos problemas acontecem com o desvio significativo de um montante de procura do serviço público para o privado, com sérias consequências, seja no número de profissionais que se dedicam em exclusividade ao serviço público, seja ao problema ainda mais grave da hemorragia de médicos e enfermeiros para o setor privado. Não tenho dúvidas de que o governo de António Costa e Fernando Medina não soube em devido tempo atalhar alguns problemas gritantes de subdotação de recursos humanos e, apesar do reduzido tempo de governação da AD, tudo parede indicar que o governo de Montenegro se tem limitado a agravar uma trajetória vinda de trás, não invertendo como seria a sua obrigação inverter o rumo dos acontecimentos. Não só não o tem conseguido, como a Ministra da Saúde parece andar perdida em todos os dossiers que lhe caíram em mãos, que não são pera doce, sabêmo-lo, mas que é indesculpável não ter deles cabal conhecimento. Os acontecimentos em torno do INEM da última semana escalaram essa perceção de problemas incompetentemente não resolvidos, mas, em meu entender, suscitam uma outra família de problemas, que resumi sob a forma interrogativa no título deste post e que se prende com a degradação moral observada no exercício do serviço público, seja ao nível governativo, seja ao nível das instituições e profissionais a elas associados. Explico-me.)
Se o SNS representa um pilar fundamental da confiança do cidadão normal no sistema democrático, o serviço prestado pelo INEM está no cimo dessa confiança, já que, como é fácil de compreender, a divisão entre os utentes do setor público e do setor privado não tem grande cabimento em matéria de acesso aos serviços do INEM. Quando se invoca a sua ajuda, a gravidade dos problemas por que as pessoas estão a passar faz ignorar essas divisões.
Ora quando, por qualquer motivo, o INEM falha nos seus tempos de resposta é toda essa confiança que é abalada. Essa desconfiança é bem mais forte do que quando se observa, por exemplo, um congestionamento conjuntural em alguns serviços de urgência. Agravados pelas situações de morte de pacientes porque não receberam em tempo adequado a ajuda de que necessitavam, as falhas do INEM amplamente noticiadas nos últimos dias provocam um sentimento de impotência e de não proteção que obviamente tem consequências gravosas na confiança no sistema democrático e na proteção que ele deveria garantir aos cidadãos independentemente do seu estado e situação social.
O caso da greve ao trabalho extraordinário levada a cabo pelo Sindicato dos Técnicos de Emergência Pré-Hospitalar, a cujos efeitos estarão associados pelo menos sete mortes ou mais por assistência não atempada, veio despertar evidências de subdotação de meios técnicos e humanos, mas veio também demonstrar a existência de tempos desmesuradamente longos de resposta política ao problema. Certamente que poderemos associar a essa subdotação problemas de inércia governativa do governo anterior, isso parece-me também evidente. Mas o inexplicável tempo alargado da resposta política e a incapacidade da equipa do Ministério da Saúde em antecipar a greve ao trabalho extraordinário, estando devidamente informada de que ela poderia acontecer, revela uma enorme incúria. Mas, além disso, parece hoje evidente que INEM podia ter pedido reforço dos serviços mínimos decretados pela Federação de Sindicatos Independentes, atendendo sobretudo a observação em simultâneo da greve às horas extraordinárias dos técnicos de emergência. Nem sequer contestou o facto do pré-aviso de greve do Sindicato dos Técnicos de Emergência Pré-Hospitalar (STEPH) às horas extraordinárias não indicar serviços mínimos.
Por isso, em meu entender existe aqui incúria política do atual governo e cumplicidade de governos anteriores em não ter mitigado a subdotação de recursos técnicos e humanos. Mas não existe só isso. Existe degradação moral das condições de exercício do serviço público de proteção na saúde. Essa é na minha perspetiva a pior dimensão do problema e a que mostra que o serviço público de saúde está hoje minado por uma significativa degenerescência moral das suas práticas.
Não há sistema democrático que sobreviva sem uma sólida base moral no exercício das funções públicas e na gestão dos serviços públicos, com relevo maior obviamente para aqueles que estão no centro da confiança nas instituições. Na minha leitura dos acontecimentos, existem sinais preocupantes nesta matéria.
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