(O incontornável e sempre grave Lawrence Summers pergunta no Twitter, no rescaldo crítico de um livro recente, Men Without Work: “Existe um fenómeno social que suspeito poder explicar o não trabalho, o não casamento, as mortes do desespero, a alienação geral e, suspeito também, o crescimento do populismo reacionário. Explicá-lo é uma grande tarefa para a ciência social ”. Com as devidas necessidades de contextualização, a sociedade americana foi a primeira a sinalizar as incidências desta alienação e não apenas isso. Foi também a primeira a revelar que politicamente é possível explorar o fenómeno, sem qualquer intenção de o mitigar, apenas com o propósito de reverter civilizacionalmente as sociedades e precipitar formas inconfessáveis de conquista do poder.)
O Twitter é de facto um mundo fascinante de debate, quando não é ele também utilizado ao serviço desses mesmos processos de conquista do poder para lograr a reversão civilizacional. Assim, o conhecido sociólogo marxista das questões urbanas David Harvey entra provocatoriamente no debate apelando a que haja alguém que responda a Summers. Não resisto a orientar o post de hoje para este assunto, depois de na noite de ontem do Fronteiras XXI (Oh Ana …) o meu filho Hugo ter representado condignamente o clã Figueiredo numa discussão que tem alguns pontos de cruzamento com esta questão.
A interrogação colocada por Summers está no centro do vendaval político que a democracia ocidental está a enfrentar nos tempos que correm. Basta procurar juntar as peças do puzzle que as sucessivas eleições europeias estão a libertar, com relevo para a ameaça que paira sobre a Europa com as eleições italianas do próximo domingo, para compreender que a interrogação de Summers se identifica com a perceção do para onde vamos.
Sem ignorar a modéstia deste contributo, arrisco dizer que ninguém conseguiu ainda apresentar uma explicação global e coerente de todo este processo. O que conseguimos, isso sim, é identificar analiticamente algumas dimensões que se cruzam e interpenetram. Uma delas, com relevo essencial para a sociedade americana, mas com extensões hoje visíveis nas sociedades europeias apesar da dimensão mais abrangente e compreensiva da proteção social, o que concede particularidade, é o problema da desigualdade provocada pelas variantes do capitalismo que se vão enraizando. Sabemos hoje, apesar da relutância do PCP em aceitá-lo, que como modelo económico o capitalismo está sozinho (Capitalism Alone de Branko Milanovic), subsistindo apenas variantes do mesmo.
O gráfico que correu mundo, mostrando o fosso entre o crescimento efetivo do salário mínimo e o que crescimento que deveria ter tido se estivesse em linha com o aumento da produtividade (e não ignoremos que esse aumento de produtividade tem sido relativamente agónico no plano global) é todo ele uma evidência de penoso aumento de desigualdade. A perda da capacidade distributiva do crescimento económico, que é também visível nas variantes do capitalismo em que os modelos de proteção social são mais salientes, tem sido visível na diferença assinalável de desequilíbrio de rendimentos antes e após a aplicação das transferências sociais. Esta sensação de perda do comboio e de não pertença e afastamento de uma sociedade dinâmica e progressiva tem provocado interações desconhecidas entre o económico material e o imaterial, entre as condições objetivas de vida e o equilíbrio mental, alargando o confronto entre a saúde e a doença. As mortes de desespero tão rigorosamente identificadas por Angus Deaton e Anne Case não são mais do que a consequência tenebrosa da combinação entre a degradação das condições de vida material e da vida espiritual de muita gente flagrada na perda continuada de rendimento.
Paredes meias com a degradação do caráter redistributivo do crescimento económico, as sociedades do capitalismo mais avançado refletem exemplarmente a situação de estarem no meio de processos que, no tempo longo, poderão trazer novos rumos de prosperidade mas que, no tempo curto das mudanças que estão a acontecer, trazem penosidade e sofrimento aos atores do momento. A complexa transformação que os mercados de trabalho estão a atravessar por força da influência combinada do progresso tecnológico (digitalização, inteligência artificial, “esverdeamento” da economia (Green Economy) e da hoje titubeante mas irreversível globalização gera nas transformações do curto prazo ganhadores e perdedores que os sistemas de proteção social e de educação e formação procuram mitigar. Mas os perdedores existem e podem ser identificados, mesmo que possamos admitir que, na senda do passado, a longo prazo o saldo entre ganhadores e perdedores será positivo. Em Itália, em França, na Suécia muitos destes perdedores foram seduzidos pelo discurso fascizante e contra as elites dos ganhadores. Estou seguro que muito do êxito desta sedução se deveu ao abandono que a esquerda mais tradicional os devotou, claramente mais interessada em proteger rendimentos e emprego dos que estão empregados do que em recuperar os que perderam por diferentes motivos o comboio. As sociedades têm horror aos vazios.
Para complicar o que já é demasiado intrincado e complexo creio que a longa transição dos modelos sociais e de organização da família faz o resto, precipitando largas massas de população na solidão depressiva, na comunicação encantatória das redes, na ilusão dos grandes grupos.
Mas são dimensões parcelares de algo mais integrado que admito não ser ainda inteligível.
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