(Há boas almas, da ciência política ou simplesmente da política, que interpretam a emergência das direitas extremas e radicais como uma resposta, dizem eles natural, à radicalização de esquerda que por aí também circula. O argumento aqui implícito seria o resultado do que poderíamos designar de preferência natural do eleitoral pelo centro moderado, que tanto pode ser de centro-direita como de centro-esquerda. O deslocamento para a direita mais radical com pretensões de exercício do poder seria assim o resultado de um sistema político plástico em busca da posição equilibrada de um pêndulo político, ao centro. A tese não me atrai e muito menos me convence. Por vários tipos de razões. Porque esta obsessão de encontrar metáforas mecânicas e plásticas para a evolução dos sistemas políticos repousa em analogias apressadas e que considero falsas. Também porque a reclamada evidência para justificar a tese está longe de ser convincente, sendo mesmo contraditória…).
Comecemos pela obsessão das metáforas e analogias mecânicas e plásticas, como se os sistemas políticos fossem dotados dessas capacidades de autoregulação e plasticidade. A história da sua evolução não aponta para tais características. Existe antes todo um historial de respostas políticas a contextos económicos e sociais que podem estar em divergência face ao modo como os diferentes grupos sociais interpretam e avaliam os problemas que daí resultam para a sua vida diária e perspetivas de futuro. A ideia de um centro lógico e inelutável não me convence. Por isso, admitir que as radicalizações, de esquerda e de direita, se determinam mutuamente pode ser apelativo e criativo mas equivale a reduzir o sistema político a uma construção lógica e mecânica sem qualquer evidência de que assim seja.
Vejamos, agora explorando os caminhos da evidência, como interpretar os processos de radicalização extrema à direita que emergem na Europa, com a novidade de que tudo indica tenha sido esquecida ou destruída a célebre linha vermelha que afastava os radicais de direita não democrática do acesso ao poder. Em França, Itália, Suécia e até a Espanha nunca esteve tão perto a hipótese dessa direita conquistar ou influenciar decisivamente o poder, transformando radicalmente o horizonte político democrático da União Europeia. É só imaginar as tropelias que se avizinham num cenário dessa natureza de diálogos inesperados entre os regimes populistas do leste europeu (Hungria, Polónia, Eslováquia, pelo menos) e as forças radicais de direita integrando governos de democracias que considerávamos sólidas. E por mais que os analistas políticos especializados em racionalizar o absurdo das coisas teimem em convencer-nos que as lideranças dessas forças estão em negação dos seus valores extremos, prontos a beatificarem-se pela democracia, basta uma análise mais fina dos seus discursos e tomadas de posição pré-eleitorais para compreendermos que a ter havido batismo ele foi de fachada.
Seguindo a tal tese da plasticidade dos sistemas políticos esforço-me por tentar compreender se nos países anteriormente citados existiu ou não esse pretenso fenómeno de radicalização à direita como resposta a processos de radicalização à esquerda. A verdade é que não encontro nenhuma correspondência fiável que mereça ser estudada mais em pormenor.
Paradoxalmente, o caso onde o argumento poderia talvez aplicar-se com mais facilidade, a Espanha, acontece que se trata do país em que me parece menos provável tais forças acederem ao poder (o VOX continua relativamente contido por um PP algo desorientado mas que ganhou nas eleições regionais da Andaluzia alguma força para barrar a possível influência Voxiana na governação (isto se o PP confirmar na prova final o que vem registando em sondagens).
Em França, na Itália e na Suécia, pelo contrário, é impossível descortinar no avanço da direita radical a justificação de resposta a excessos de radicalização da esquerda. As três situações consideradas apontam para contextos e razões muito diferenciados. Em França, a lenta ascensão do Rassemblement de Marine Le Pen é mais o resultado do preenchimento de um vazio aberto pela agonia do Partido Comunista e pela menorização do Partido Socialista na resposta aos problemas de largas franjas da população francesa, apesar de se tratar da democracia europeia com mais peso do chamado Estado Social. Em Itália, a sociedade italiana nunca digeriu plenamente a transição do fascismo mussoliniano para as instituições democráticas e talvez não seja por acaso que a meteórica Giorgia Meloni militou ainda nas juventudes inspiradas por esse fascismo. A radicalização à direita está impregnada em Itália de tensões diversas, que vão do separatismo, o ressurgimento fascista e o radicalismo de pantomina e muito restaurador Olex e Viagra de Berlusconi. O caso sueco é talvez aquele que deve merecer análise mais aprofundada, pois a vingar a tese das respostas mecânicas a questão estaria no efeito do Estado Social sueco um dos mais estruturados do mundo, sobretudo porque conseguiu atingir o equilíbrio sempre procurado entre proteção social e inovação. Essa questão é de uma complexidade extrema, pois a única variável desse Estado Social que talvez possa ter contribuído para a ascensão das forças de direita radical é a da tolerância para com a população migrada do estrangeiro. Talvez se tenha ali formado o contexto perfeito para a emergência de pensamentos securitários porque se há domínio em que a objetividade da informação é sempre discutível é a da criminalidade, que pode mesmo não estar associada à imigração.
Resumindo, se em Itália há questões não resolvidas na sociedade italiana em matéria de valoração do fascismo, nos outros países o que verdadeiramente se coloca são contextos económicos e sociais muito desafiantes (imigração incluída) que exigem respostas políticas que não constam dos cardápios e manuais pelos as lideranças de esquerda estudaram. A emergência do eleitorado sensível ao discurso da direita radical não é a resposta a uma radicalização da esquerda. É antes o resultado de um vazio criado pela ausência de respostas proporcionadas por essa mesma esquerda. Este vazio (o eleitorado não aprecia vazios), combinado depois com uma comunicação social que ela própria não entendeu que a maioria destes projetos radicais são meros processos de assalto ao poder e não alternativas ideológicas que exigem equidade de tratamento, é ele que alimenta o processo e contribui para a queda das tais linhas vermelhas.
Estou para ver de que modo este horizonte influencia os destinos da construção europeia. A Ucrânia tem ocultado toda esta questão. Mas nem mesmo com uma guerra em plena Europa o problema pode ser descartado.
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