terça-feira, 20 de setembro de 2022

E DEPOIS DO ADEUS?

 


(A sempre perspicaz Gillian Tett do Financial Times interrogava-se no Twitter, @gilliantett, se de facto a globalização está morta depois de confirmar a dimensão profundamente global com que as exéquias da Rainha Isabel II foram seguidas no mundo inteiro. E é nessa perspetiva que dedico o último post a esta matéria, sobre a qual os autores deste blogue manifestaram a sua estranheza pela cobertura obsessiva que a morte da Monarca mereceu da comunicação social portuguesa. Claro que em matéria de cerimoniais ritualizados os britânicos dão cartas obviamente num resquício imperial que protocolarmente está já enraizado e não há transmissão televisiva que resista à estética das multidões em reconhecimento, com destaque para aquele Long Walk que dá acesso ao Castelo de Windsor onde Isabel II foi sepultada já sem a intrusão das câmaras. E o único tema relevante que resta é o da pergunta sagrada – e depois do Adeus?)

E depois do adeus há já um facto claro e indesmentível com que o pobre Rei Carlos III (e não é o problema das canetas que vertem tinta para os dedos reais) se tem de confrontar. É generalizada a baixa de expectativas acerca do que a monarquia britânica pode contar desaparecida que está Isabel II, como se de um produto novo se tratasse e chegasse já aos mercados com uma desvalorização de preço e de valores futuros. Os analistas referem como muito provável que o sentimento de que a monarquia é algo de anacrónico nos tempos de hoje irá reforçar-se na nova era. Até a circunspecta Economist arrisca essa previsão. E a verdade é que o acontecimento do funeral será na história talvez o último evento a marcar a dimensão de Londres como centro do mundo, que mais não será, apesar da imaginação doentia e fraudulenta dos Brexiters.

Eu sei que vivi demasiado intensamente os episódios de The Crown e corro o risco de confundir ficção e realidade (o que só evidencia a qualidade da série), mas o pobre Carlos vai ter de se munir de todos os tratados possíveis de automotivação para levar à prática os diversos juramentos que tem celebrado por estes dias. Tantos anos de preparação e de expectativa e começa a trabalhar aos 73 anos de idade, num contexto em que lhe dizem à partida que tudo irá ser diferente e que se deve preparar para o aumento dos que acham que a sua função é anacrónica. Oh Camila ampara o homem!

Este fim de semana li um artigo no New York Times internacional, escrito por um professor de escrita criativa na Universidade de Nova Iorque, Hari Kunzru, com motivos justificados para se insurgir contra os mitos do Império Britânico (antepassados seus passaram-lhe esse testemunho), que me proporcionou valiosos elementos de reflexão. Na longa reflexão que Kunzru dedica ao desaparecimento de Isabel II, achei uma verdadeira preciosidade a indicação de um verso que o poeta conservador Philip Larkin foi convidado a redigir para o jubileu da Rainha em 1978. Cito primeiro em inglês e ensaio depois seguramente uma desajeitada tradução:

In times when nothing stood

but worsened, or grew strange,

there was one constant good:

she did not change.”

Em tempos em que nada ficou na mesma

mas em que as coisas pioraram, ou cresceram estranhas,

existe apenas um bem constante:

ela não muda.”

Confesso que nunca tinha pensado neste valor profundo da era elizabetiana. Isabel II foi a constante que a sociedade britânica mais comprometida e seduzida pelos tons do Império precisava para inconscientemente ajudá-la a suportar a dor profunda da mudança e da queda do Império. Claro que o Brexit foi uma tentativa de medicamento suplementar, mas nunca saberemos o que a soberana pensava dessa disrupção. O outro dizia que alguma teria de mudar para ficar tudo na mesma. O lema de Isabel II não era esse, mas antes o da constância dos valores para ocultar as mágoas da perda. O seu desempenho segundo esse lema foi verdadeiramente notável. E de certo modo a globalidade das suas exéquias são a marcação rigorosa de um tempo, desse tempo de constância para ocultar os dissabores da perda. Com a sua morte, esse tempo finou-se também. O que suscita a curiosidade de saber onde a monarquia britânica vai encontrar o racional para continuar a propor um contrato à sociedade britânica.

Sabemos que em democracias constitucionais, o anacronismo da democracia precisa desses racionais para se aguentar. Em Espanha, por exemplo, foi o contributo do Rei Emérito para a transição democrática que tem aguentado o pensamento anti-monárquico. Esse mesmo Rei Emérito encarregou-se de dissipar esse racional (a carne é fraca, mesmo sendo real, sobretudo se for real como a história nos mostra). O seu filho Rei Afonso VI tem-se esforçado por recuperá-lo e a plebeia Letízia vestindo Zara ou outra criação espanhola ajuda na tarefa. Onde vai Carlos encontrar esse racional?

 

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