sexta-feira, 23 de setembro de 2022

ANTÓNIO LUCIANO

António Luciano Pacheco de Sousa Franco foi um notável cidadão, académico e político português que desapareceu brutal e precocemente (61 anos) numa campanha europeia do Partido Socialista na lota de Matosinhos. Se ainda estivesse entre nós, o Professor Sousa Franco teria completado 80 anos de idade há dois dias.

 

Sobre ele não me estenderei em referências biográficas, as quais são genericamente conhecidas do grande público (da Faculdade de Direito ao Tribunal de Contas, do PSD à ASDI, do Parlamento ao Ministério das Finanças), que seguramente dele guarda várias memórias muito positivas pela sua fortíssima noção de serviço público e pelo zelo e competência com que abordava os assuntos que lhe caíam em mãos. Mas ouso dar a conhecer, num breve parêntesis, três minúsculos apontamentos de ordem estritamente pessoal que a ele adicionalmente me liga(ra)m: a forma madura, aberta e sábia como “negociou” comigo no seio do XXIII Governo Constitucional a participação do Estado num fundo para a internacionalização da economia portuguesa que eu tinha a responsabilidade de montar; as conversas de circunstância, mas sempre de conteúdo preciso e espesso, que tivemos por várias vezes aos Domingos de manhã quando comprávamos o jornal do dia num local comummente próximo das nossas casas, à Avenida Álvares Cabral; a “herança” que me/nos coube quando assumimos o arrendamento da casa que iria habitar em Bruxelas, à Avenue de la Renaissance, então ocupada pelo atual embaixador na REPER, Pedro Lourtie.

 

Quero, pois, recordar aqui com saudade e admiração a figura de Sousa Franco, para o que nada de melhor encontro do que recorrer a um dos seus múltiplos artigos em “O Jornal” (este intitulado “Pregar... no pântano”, datado de 4 de janeiro de 1985 e referenciado a análises e notas que ali reporta a anos precedentes), sobretudo na medida em que nele se podem encontrar evidenciados diversos tópicos que, apesar de condensados há quase quatro décadas, permanecem algo paradoxalmente atuais e tão cheios de lucidez quanto de conteúdo e valia inalterada para os dias de hoje (realço, por sintomáticos, a tónica nos “problemas de fundo”, a necessidade de “estruturas de reforma e decisão de médio prazo”, a descentralização como “critério decisivo” ou a imprescindibilidade de “decidir por uma vez os grandes programas e projetos”). O que só desabona os caminhos que (não) temos trilhado, mas que faz sobressair também a rara visão do autor, como seguidamente procuro ilustrar.

 

·       “Vivemos de mal a pior. Sobe a vozearia dos ralhos, na casa onde não há pão ― a propósito de tantos buracos que já não têm conto. No domínio socioeconómico, não ultrapassamos a descrição de males periféricos ― discutindo números que, no caos presente, pouco significam, a não ser o sentido da manipulação que deles se faz. A incultura económica de (quase) todos vai de par com a tecnocracia inculta dos principais responsáveis financeiros.

Discutir a política económica? Não. Apurar os défices ocultos, que na desorganização ninguém consegue quantificar? E para quê? Um velho financeiro francês já pôs o dedo na ferida: ‘dai-me uma boa política, dar-vos-ei boas finanças.’ E a boa política, só de uma boa doutrina e de bons princípios éticos pode nascer. Por aí se perdeu Portugal.

É disso ― dos problemas de fundo ― que importa falar. Da raiz do mal, mais do que dos sintomas.”

·       “Não vale a pena pensar que uma política de desenvolvimento e reformas sai armada e equipada de meia dúzia de cérebros ou pode preparar-se no segredo dos gabinetes. Não pode. Toda a gente sabe que tal política não está sequer em estudo, porque, se estivesse, o País sabia-o (um bom exemplo, nas circunstâncias do tempo, foi a política de planeamento do Estado Novo, da qual ainda vêm, no essencial ― corrigido pela utopia ideológica, por vezes inconsistente, da Constituição ― todas as parcelas de políticas de médio prazo que por aí andam no ar...

Para isso, há que criar estruturas de reforma e decisão de médio prazo, que sem ignorarem os ministérios ultrapassem a dimensão do curto prazo que hoje avassala tudo. Haveria que criar um motor das necessárias reformas, seja num setor autónomo da Presidência do Conselho (seria voltar atrás, mas a experiência foi eficaz), seja um Ministério da Coordenação Económica e do Plano encarregado apenas de coordenar e articular a política de reformas económico-sociais (ao Ministério das Finanças bem basta a gestão financeira e as reformas financeiras, acrescidas em meu entender da política de preços e concorrência).”

·       “Quanto ao conteúdo das estratégias, alguns pontos de princípio:

1 ― A prioridade da educação, investigação e cultura são fulcrais;

2 ― A descentralização ― regional e municipal ― é um critério decisivo;

3 ― É urgente desburocratizar a economia e dar execução, eventualmente com correções, à lei de defesa da concorrência: revalorizar, assim, o mercado e dar claramente espaço ao setor privado, num plano de economia mista (...);

4 ― Criar condições para a melhoria das condições mais fundas do atraso nacional: reorganizar de fundo o improdutivo setor da investigação científica e tecnológica, dar prioridade às reformas e à afetação de recursos no domínio da educação-formação e, depois, no da criação de capital humano;

5 ― Incrementar o cooperativismo e as formas sociais de produção que sejam viáveis num sistema global ― nacional e internacional ― que haveria de ser misto e de mercado; e promover prudentemente a descentralização, a participação e a justa distribuição e organização territorial e setorial dos poderes e dos recursos;

6 ― Concentrar a atividade do Estado e restante setor público nos setores da sua vocação, quanto possível em economia mista e de forma concorrencial;

7 ― Rever globalmente e tornar eficaz o sistema de incentivos, definir setores e critérios de prioridade, decidir por uma vez os grandes programas e projetos, eternamente polémicos e em bolandas, a acumular prejuízos e a empatar as decisões. Desregular, sem deixar de orientar, uma economia hoje condicionada a autorizações administrativas parcelares e sujeita à paralisia, favor e corrupção, mas sem orientações e critérios gerais claros; (...)”.

 

Sousa Franco desapareceu há dezoito anos e tem feito enorme falta ao País. Resta-nos honrar a sua passagem e porfiar com perseverança no seu exemplo.

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