quinta-feira, 8 de setembro de 2022

CUIDADOS E CUIDADORES

                                                                                


(Percebe-se que a disrupção provocada pela invasão da Ucrânia tenha colocado a crise energética no centro das preocupações europeias, de certo modo receando o pior com a chegada do inverno e com a transição brutal para novas condições de aprovisionamento energético, fruto do grande erro estratégico da Senhora Merkel que terá mal interpretado os desígnios do senhor Putin. Porém, um outro inverno talvez devesse disputar a primazia das preocupações europeias. É do inverno demográfico que estou a falar e obviamente das suas consequências para a consistência do modelo social europeu, uma coisa que deveríamos defender de modo mais consistente, dado o que ele potencia de diferenciação de condições de qualidade de vida. Com algum atraso, a Comissão Europeia parece finalmente mover-se para inscrever na agenda política a questão dos cuidados e dos cuidadores em contexto de envelhecimento generalizado.)

Tuscany Bell e Jan Willem Goudriaan alertam-me na Newsletter do Social Europe (link aqui) para a publicação pela Comissão Europeia da muito aguardada Estratégia Europeia de Cuidados e seu encaminhamento para as instituições comunitárias como o Conselho.

A questão dos cuidados e dos cuidadores sociais em contexto de brutal envelhecimento da Europa (previsões de crescimento de cerca de 88% nos próximos 30 anos do número de pessoas com mais de 80 anos de idade) assume no desenho dos contornos do futuro europeu uma relevância crucial. Para além de se tratar de um dos princípios mais importantes do Pilar Europeu dos Direitos Sociais, trata-se de uma matéria que condicionará brutalmente a qualidade de vida dos cidadãos europeus, colocando à prova a tão propagada vantagem do modelo social europeu relativamente a outras formas de organização do capitalismo. A forma brutal como os efeitos da pandemia se abateram sobre este grupo de população com mais de 80 anos de idade ilustrou de forma trágica a valia deste argumento. A mitigação que foi possível concretizar em muitos países deste problema ajudou-nos a compreender que a relação entre este grupo vulnerável e os serviços sociais e de saúde não são equacionáveis sem a intermediação dos cuidadores, independentemente do seu estatuto de servidores públicos, privados ou simplesmente informais.

A questão dos cuidadores sociais está enormemente fragmentada na União, com a descentralização da área dos cuidados sociais pelos diferentes países e respetivas unidades territoriais de governo e dispersa por múltiplas soluções de mercado, incorrendo estas últimas frequentemente em derivas de priorização das condições lucrativas em detrimento da qualidade do atendimento. Pode dizer-se que a lógica da proximidade assim o exigiria. Mas é inequívoco que a lógica da proximidade não pode deixar de ser combinada com o reconhecimento político da importância do fenómeno, que deve ser aliás considerado um elemento-chave do contrato de confiança que deveria existir entre a União, os Estados e os cidadãos. No meio deste turbilhão descentralizador e de soluções de mercado, o que sabemos é a progressiva deterioração das condições de trabalho dos cuidadores sociais, cuja estrutura remuneratória não tem a dignidade que a situação objeto da intervenção desses profissionais recomendaria. E, mais do que isso, os últimos tempos têm permitido confirmar uma evolução contraditória – aumenta o número de cidadãos candidatos aos cuidados e o número de profissionais tem diminuído, exemplo claro de “mismatching” entre a procura e a oferta. Se acrescentarmos a isto a outra evidência de localização de massas de pobreza absoluta neste grupo de pessoas, percebemos a dimensão de gravidade global que está aqui reunida.

Pode dizer-se que o pronunciamento da Comissão Europeia vem tarde mas é de qualquer modo positivo, pelo que pode representar de focagem da abordagem do Pilar Europeu dos Direitos Sociais e de sensibilização dos Estados-membros para pôr ordem nesta matéria e tentar travar a degradação das condições de trabalho dos cuidadores sociais.

O material agora publicado consta de três tipos de documen:

  • Uma comunicação da Comissão Europeia ao Conselho, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões com uma visão estratégica sobre os Cuidados Sociais na União (link aqui);

  • Uma proposta de recomendação ao Conselho focada na melhoria de qualidade dos cuidados sociais a longo prazo (link aqui);
  • Uma proposta de recomendação ao Conselho para revisão das metas de Barcelona sobre condições de educação e de cuidados de crianças (90% das crianças entre os 3 anos e a idade escolar e 33% das crianças com menos de 3 anos com prestação de cuidados) (link aqui).

Claramente que os desafios deste pronunciamento da Comissão Europeia estão na efetividade com que a melhoria das condições de serviço aos idosos carenciados de cuidados e a melhoria das condições de trabalho dos cuidadores irá ser concretizada. Tudo o que contribua para, simultaneamente travar e inverter a tendência recente de aumento de necessidades de cuidados e diminuição de profissionais, representará um contributo positivo.

Esta é uma questão que obviamente, por todos os motivos e mais um, o interesse pessoal, me preocupa.

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