sexta-feira, 23 de setembro de 2022

REALITY CHECK FISCAL

 


(Embora o homem seja uma simpatia e um poço de sabedoria, comprovei-o em almoço de trabalho no âmbito de uma iniciativa na CCDR Centro, em Coimbra, começo a não ter pachorra para as tiradas diletantes do nosso Ministro da Economia, uma aposta claramente arriscada de António Costa neste novo Governo. E muito menos pachorra ainda para as divergências em público de membros do Governo, alguns dos quais parecem sofrer de incontinência verbal, qual efeito pavloviano da presença de um microfone à frente de cada Ministro. A diletância e divergência de momento entroncam no velho debate do aliviamento de impostos, depois de António Costa Silva se ter saído com a ideia de uma descida transversal da taxa de IRC, imediatamente seguido de vozes discordantes mais ou menos afetas ao Governo, fechando Fernando Medina aparentemente a questão invocando as negociações em curso em sede de Conselho Económico e Social no quadro da preparação do Orçamento de Estado para 2023.)

Nos tempos que correm qualquer bicho careta populisto-liberal acena com a descida de impostos como sendo a panaceia ou mezinha milagreira para a resolução de todos os problemas. Algum do jornalismo económico que se passeia pelas televisões rapidamente entra em êxtase com promessas de descidas de impostos, com relevo para a idiotice do José Gomes Ferreira na SIC. Já por repetidas vezes aqui sublinhei a ideia de que não sou obviamente avesso a considerar que existe alguma fadiga fiscal em Portugal, mas sempre considerei que a questão não se discute em abstrato, mas pelo contrário com rigorosos “reality checks” da situação fiscal portuguesa. Para além disso, não há fundamentação rigorosa disponível que demonstre que as empresas respondam a uma descida transversal dos impostos com aumento de investimento, que é o argumento central da pretensa relação menos impostos, mais crescimento.

A última personagem a chegar ao grupo dos impetuosos defensores da relação menos impostos – mais crescimento é a recém-empossada primeira-Ministra britânica, Liz Truss, que anunciou imediatamente a sua ladainha com ares de mezinha milagreira. No âmbito do mini-orçamento de 2022 que os conservadores apresentaram, a descida de impostos é estimada com um custo para o Tesouro de cerca de 37 mil milhões de libras para o período de 2023-2024 (link aqui). O novo Chancellor Kwasi Kwarteng anunciou orgulhoso a inversão de rumo em matéria fiscal e as primeiras estimativas anunciam compreensivelmente que os ganhos com essa descida estarão concentrados nos 5% mais ricos. Nada de novo em relação a outras experiências conhecidas de descidas de impostos como o foram por exemplo as medidas de Trump nessa matéria.

Projetando a questão em torno da tirada do Ministro da Economia, como referi anteriormente a fadiga fiscal não pode ser ignorada. A taxa estatutária máxima de 31,5% está entre as três mais elevadas da OCDE e segundo cálculo de três mulheres economistas do Banco de Portugal (Cláudia Braz, Sónia Cabral e Maria Manuel Campos) a taxa implícita de imposto obtida a partir de uma proxy de Contas Nacionais para o rendimento tributável foi de 23,5% em 2019, refletindo segundo as autoras “uma estimativa aproximada para a progressividade resultante quer da estrutura das taxas, quer dos benefícios, incentivos e deduções fiscais”.

O artigo das três economistas do BP é uma excelente base para o reality check fiscal que todos deveríamos realizar antes de abrir a boca e opinar sobre a evolução desejável do IRC em Portugal. Claro que o assunto nunca deveria estar dissociado da desejada harmonização fiscal da taxa de IRC na União Europeia, mas já cansa falar da inércia com que a União trabalha o problema. Ao longo desta semana, o Público trouxe para o público este artigo publicado pelo BP em janeiro de 2022, interrogo-me se fruto da intuição e competência jornalísticas de alguém, acredito que sim, se orientada por quem interessado em dar um pequeno banho de realismo fiscal ao Ministro da Economia

Como é conhecido há já bastante tempo, Portugal pode ter um problema de fadiga fiscal, mas mais importante do que isso é a reduzida base fiscal, quer do IRS, quer também do IRC. E o artigo, trabalhando uma valiosa base de declarações fiscais chega a conclusões verdadeiramente marcantes para se compreender de que base fiscal estamos a falar: “A amostra é claramente dominada por micro-empresas, as quais representam mais de 80% das observações em 2010-2019, mas pagam menos de 16% do total de impostos neste período. Em contrapartida, as grandes empresas representam apenas 0,5% da amostra mas são os contribuintes mais relevantes em termos de IRC, cobrindo quase 45% do total de impostos pagos no período. No que se refere à classificação setorial, a maioria das observações (mais de 70%) refere-se a empresas do setor dos serviços. A indústria e a construção representam, respetivamente, cerca de 13% e 11% do total das observações” (link aqui).


 (Com a devida vénia ao BP e às economistas Cláudia Braz, Sónia Cabral e Maria Manuel Campos)

Sem querer evoluir para uma discussão puramente técnica do assunto, outros o farão bem melhor do que eu com melhores galões, a realidade da base fiscal que transparece dos números anteriormente apresentados não pode deixar de impactar o tipo de abordagem que precisamos para dar mais consistência à relação “menos impostos, mais crescimento”. Entendamo-nos. A grande força fiscal do IRC situa-se em 0,5% da amostra, logo com possibilidade de praticamente se conhecerem as empresas uma a uma. Assim sendo, em vez de uma diminuição transversal da taxa estatutária, sem mais, não será mais vantajoso associar descidas de impostos a grupos específicos de empresas em função de objetivos claros, tais como modernização de equipamento (com toda a imaterialização da competitividade, o investimento em equipamento continua a ser um dos mais intensos fatores de aumento da produtividade), maior intensidade de inovação, prémios de produtividade, o que seja? E para outros grupos de empresas não valerá a pena associar deduções de impostos com contrapartidas claras, por exemplo em matéria de investimentos em formação aos trabalhadores?

No debate desta semana do Fronteiras XXI na RTP 3, o empresário e investidor Carlos Moreira da Silva manifestava-se incrédulo e algo revoltado com a baixa percentagem de empresas que faz formação, afirmando que seria inaceitável haver empresas, uma que seja, que não invista pelo menos em 25 horas de formação por ano e por cada trabalhador. Claro que em torno desta evidência, se levanta imediatamente um burburinho de que em micro e em PME é praticamente impossível libertar trabalhadores para a formação. O problema está muito bem referenciado na literatura e tem resolução possível com diferentes abordagens em função dos quadros institucionais de cada país.

Não seria conveniente começar a pensar esta afã de descida de impostos no quadro de estímulos aos investimentos em formação, por exemplo?

Uma recomendação pro bono: não abram debates como o da descida de impostos sem ter por companhia um reality check rigoroso e transparente da base fiscal da qual se parte. Porque de palradores fáceis e artífices de ladainhas estamos nós fartos, sejam eles mais ou menos diletantes.

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