(Tinha quase perdidas na memória, ou pelo menos enferrujadas, as rotinas da ligação Porto-Lisboa-Porto que tantas vezes concretizei, quase sempre com o trabalho à perna. Em tributo a essa rotina, ensaio algumas reflexões a que chamo “pendulares”, não apenas porque manejadas no Alfa Pendular, mas sobretudo porque a viagem é cada vez mais oscilante, sinal que algo não está bem, seja na infraestrutura, seja nas composições e viajo em primeira classe, tirando partido do desconto de 50% para “velhinhos”. Curiosamente, tudo isto se passa numa semana em que de novo nos é prometida a alta velocidade, prometendo uma hora e quinze minutos na versão acabada do projeto e duas horas e picos na versão intermédia. Confesso que começo a não ter pachorra para este tipo de apresentações do tipo desta vez é que vai, já que com 73 anos já passei por várias, cada qual a mais eloquente e entusiasmante e o confronto com a dura realidade permanece. Quando no dealbar de abril de 1974, este vosso Amigo fazia a sua instrução militar em Lisboa, o Foguete da altura que me levava e trazia fazia a ligação praticamente com a mesma duração da que me vai hoje ser proporcionada. Ora estamos a falar de algo que acontecia há praticamente cinquenta anos. Apetece dizer que o mistério de tanto dinheiro derretido sem que o indicador crucial, o tempo de viagem, se tivesse alterado, apesar da melhoria de qualidade das composições, é um enigma que para ser resolvido nos traria provavelmente motivos suficientes para a depressão nacional.)
Em busca de reflexões que embalem o tempo da viagem, hesitei entre a pelintrice dos pequenos dramas dos nossos ministros, e há todo um manual que me apetecia escrever sobre que condições pessoais evitar para ser Ministro em Portugal, e elevar um pouco o nível, refletindo sobre o que o contexto internacional nos tem reservado.
Na pelintrice dos pequenos dramas, temos tido uma vasta panóplia de situações. Num quadro geral em que se pressente que cada ministério guarda religiosamente a informação e não a partilha voluntariamente com os outros Ministros e Ministérios (sim ainda não estamos na fase das facadas nas costas), temos tido diversidade que baste para nos entreter. É a Ministra que tem o Marido empresário (o país precisa deles dirá a Senhora) e que concorre a fundos europeus sobre os quais tem tutela (obviamente que ninguém é estúpido para pensar que a Senhora participa como analista de mérito dos projetos. É o Ministro tão elogiado quando esteve do lado do pensamento estratégico e tão falado quando se passou para o lado da decisão que puxa dos galões e diz que costuma ter razão antes do tempo (finalmente descobri o racional de António Costa para o ter convidado e abdicado de um outro Ministro já rodado na concertação empresarial). É o Ministro generalizadamente bem recebido pelo sistema de atores do SNS que tem matrimónio com uma bastonária de uma área que se relaciona com o Ministério e lá entrámos nós pelo mundo obscuro das incompatibilidades. O rol poderia continuar e daí a minha obsessão por escrever um manual para pessoas impuras, homens e mulheres, avaliando das suas chances para aspirar a ser Ministro ou Ministra neste país plantado na periferia da Europa.
Elevando o nível, penso sobre o que a invasão da Ucrânia nos tem trazido, sobretudo depois da contraofensiva ucraniana e da mobilização forçada promovida pelo regime de Putin, a principal machadada na sua estapafúrdia tese da operação especial de desnazificação. Toda a campanha de ocultação de uma invasão e do mais declarado ato de guerra dos últimos tempos caiu por terra com a necessidade de explicitar esta mobilização. E percebemos também várias coisas. Percebemos por exemplo que não há machado que sustenha as raízes profundas do descontentamento. E que abunda coragem por aquelas paragens colocando-nos de sobreaviso sobre as complexas relações entre Putin e os Russos, que por vezes ignoramos na voraz tentativa de anular o Autocrata. Percebemos também que o Regime é extremamente lento no seu processo de decisão. Entre a decisão da mobilização alargada e a saída descontrolada de uma massa imensa de russos para a Finlândia e para a Geórgia, principalmente, demorou uma eternidade até a repressão se fazer sentir com a insidiosa localização de postos de mobilização nas principais fronteiras do êxodo. Esta lentidão pode explicar-se por várias razões, todas elas desfavoráveis ao Autocrata. A burocracia está lenta ou anacrónica ou os descontentes de dentro fizeram tudo para prolongar no tempo a válvula de saída. Há ainda toda a série de mensagens telefónicas e de outros tipos de comunicação que têm sido divulgadas refletindo diversas formas de descontentamento sobre o que está a passar-se. E como seria de prever, conhecendo minimamente o inferno étnico em que a Federação Russa está construída, a mobilização forçada vai ser uma forma velada de limpeza étnica, remetendo para a frente de batalha gente das Repúblicas e dos Oblasts mais incómodos para a pureza que Putin aspira reconstituir da alma russa.
Há pouco tempo dei-me ao cuidado de perceber um pouco melhor a composição da Federação Russa em termos de Repúblicas e oblasts do ponto de vista da sua diversidade geográfica e étnico-religiosa. O que vi foi um universo total de amplitude e diversidade tais para o qual gostaria de perceber que modelo de democracia pensa o Ocidente ser possível instalar por aquelas paragens.
Na creio que vã tentativa de compreender melhor o que se vai passando por aquelas paragens, recordei algumas leituras de outros tempos (tinha à mão pelo menos dois volumes da grande trilogia de E.H. Carr sobre a revolução bolchevique) sobre a atribulada época do pós-Revolução de 1917 e que conduziu, entre outras coisas, a um humilhante tratado entre os Bolcheviques e os Alemães, o chamado tratado de Brest-Litvosk assinado em 1918 e que revelava já um movimento bolchevique em claro recuo. E recordei uma coisa que não é muitas vezes invocado. Os líderes intelectuais do movimento bolchevique, sobretudo Lenine e Trotsky, tinham na altura a noção de que uma revolução operária lhes tinha caído nas mãos mas no país errado. Em que sentido? No sentido de que a Rússia de então era uma nação atrasada do ponto de vista do desenvolvimento das forças produtivas. Daí o seu interesse nos movimentos revolucionários então instalados em países como a Alemanha, onde o nível de desenvolvimento das forças produtivas estava mais próximo do que eles pensavam ser as condições ideais para a Revolução. A história mostraria, entretanto, tragicamente, que os desenvolvimentos contraditórios na Alemanha levariam a alianças impensáveis e aí sim ao advento do nazismo. Aliás, depois de terem falhado as emergências revolucionárias principalmente na Alemanha, esse período colocou a revolução bolchevique numa contradição insanável: por um lado, regressada ao campo interno da União Soviética, então ainda não URSS, a revolução era diplomaticamente obrigada a negociar e a concertar com os países que tinham esmagado a pretensão de alargar a Internacional.
Reflito sobre isto, enquanto o Alfa acumula atraso, porque dá a clara impressão que Putin salta deliberadamente a história, ignorando deliberadamente todo o período bolchevique e toda a cedência de autonomia a um conjunto alargadíssimo de Repúblicas que os líderes de então se viram forçados a acomodar para “salvar” a anomalia que lhes tinha caído nas mãos, essencialmente pela debilidade do regime Czariano.
Putin está na defensiva em claro recuo da mirabolante estratégia que desenhara. Isso não quer dizer que a sua derrota esteja para breve. Até lá, talvez fosse bom pensar que raio de modelo democrático pode ser ensaiado para o universo das 19 Repúblicas, isto se, entretanto, o rastilho não tiver sido acelerado.
Entretanto, como fim da reflexão, o Alfa recuperou o atraso e pelo menos em Aveiro conseguiu chegar no horário previsto, o que evitou que esta crónica acabasse com um insulto.
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