terça-feira, 13 de dezembro de 2022

POSTAL DE STRASBOURG

 

Fugida em weekend alargado para Strasbourg, a autoproclamada “capital do Natal” que não estará longe de o ser com o devido mérito. Frio enregelante de que já me tinha desabituado, convívios com amigos (em especial o inexcedível casal Hanning) e seus conhecidos, algumas compras e voltas citadinas (há sempre um recanto novo a explorar!) e uma União Europeia a terminar 2022 em escândalo por via da prisão de uma dos catorze vice-presidentes do Parlamento Europeu (a grega Eva Kaili) e de três outras personalidades relevantes (o companheiro, antigo assistente parlamentar de Pier Antonio Panzeri, atualmente presidente da ONG “Fight Impunity” e também inculpado, e o secretário-geral da ITUC (confederação sindical internacional) Luca Visentini), acusadas de envolvimento num caso de corrupção que parece ainda longe de estar percebido em todas as suas dimensões e cumplicidades a ponto de já ser designado por Qatargate. Deixando os detalhes para as notícias em concreto, o que aqui me importa é realçar o que por vezes temos sustentado a propósito do projeto europeu e da sua construção tão cheia de solavancos. Deixo essas considerações para mais logo.

 

 

Em continuação, pela noite:

 

Referia-me ao projeto europeu e à sua construção. Um projeto que continuo a encarar como a experiência historicamente mais rica de convivência, simultaneamente concorrencial e cooperante, entre nações. Um projeto cuja construção tem sido feita de realismo e sonho, de muitos avanços e outros tantos recuos, de alguns saltos arriscados ou tentativos logo dando lugar ao regresso a uma lógica dominante de pequenos passos, de manifestações primariamente nacionalistas e visões federalistas nunca solidamente afirmadas. Uma construção em que tanto imperam as coisas boas como as coisas ilógicas e burocráticas, onde os malefícios dos egoísmos nacionais não cessam nunca de se fazer sentir e os interesses partidários e pessoais encontram frequentemente espaço para medrar. O presente caso em torno de Eva Kaili é um pouco a evidência de tudo isto, seja porque está em causa a forma canhestra com que são escolhidos os ocupantes dos lugares de topo do Parlamento, seja porque o Grupo S&D (talvez como também o PPE ou o ALDE, ou seja, as grandes famílias políticas europeias) tem sido crescentemente incompetente para prestar atenção às suas lideranças e gerir do ponto de vista político as suas responsabilidades, seja simplesmente porque “a carne é fraca”. Além de ser prática corrente a do negócio dos princípios em nome de uma european realpolitik que em última instância impõe o primado do conjuntural e das suas alegadas premências ― como acaba de ser divulgado no que respeita à Hungria de Viktor Orbán, com o Conselho a trocar os anunciados vetos húngaros no quadro do conflito russo-ucraniano por um continuado acesso a fundos estruturais (diminuindo o alcance da mais dura proposta da Comissão, que passava por uma suspensão até que estivessem preenchidas algumas condições definidas como mínimas para a presença de um Estado de direito, mas não deixando de avançar num castigador primeiro passo ― lá está! ― com base num racional inédito e profundamente marcante em termos de afirmação de valores).


(cartoon de Agustin Sciammarella, http://elpais.com)

Concluo: a Europa é como a democracia, uma construção imperfeita e cheia de vícios, mas como resistir às múltiplas atratividades do seu apelo de largo e sistémico espetro enquanto existirem salvaguardas de um funcionamento assente em regras (mesmo quando estúpidas), vantagens percebidas por cada um (mesmo quando mal distribuídas) e forças internas desejosas de a minar ou autocracias externas focadas em ameaçar os seus povos? Numa frase: ser europeísta hoje passa por compreender que a desesperante Europa que aí está é o melhor horizonte possível do nosso tempo, um horizonte a preservar sem rebuço enquanto a longínqua viabilidade de um outro, desejavelmente mais justo, não despontar.

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