(O meu colega de blogue já deu a devida nota sobre a qualidade como o jornal Público tratou recentemente a evidência sobre o peso da imigração em Portugal, em grande medida feita com base no excelente relatório anual do Observatório das Migrações, coordenado por Catarina Reis de Oliveira. As reflexões que partilho hoje convosco inserem-se nessa linha e resultam de algumas abordagens que tenho realizado no terreno do planeamento regional, sobretudo em territórios cuja perceção do declínio demográfico se adensa, não como algo de abstrato, mas antes como qualquer coisa que começa a impactar de forma decisiva as nossas vidas. O que os dados trazidos pelo Observatório e pelo Público nos trazem é, em meu entender, uma situação paradoxalmente ambivalente – se, por um lado e do ponto de vista dos fluxos de saída, Portugal enfrenta uma situação muito difícil de contrariar no curto prazo, já na perspetiva dos fluxos de entrada o país tem uma oportunidade única de ir além de uma intervenção simplesmente reativa.
Ciclicamente, a sociedade portuguesa tem-se apercebido que começa a ser fertilizada por fluxos de população estrangeira. Para lá da quase contínua presença de população proveniente das ex-colónias, que por vezes é difícil de avaliar se se trata de residência definitiva em Portugal ou se corresponde a períodos temporários de visita à família, em diferentes momentos tivemos a perceção clara de que o nosso mercado de trabalho se ia enriquecendo com diferentes nacionalidades. Recordo-me que, há duas décadas, a presença da população de leste (ucranianos então não na situação difícil em que a recebemos hoje, mas simplesmente em procura de trabalho) sentia-se com clareza. Ultimamente é o peso marcante da população brasileira que se destaca, alguma da qual vai infelizmente sendo cúmplice da odiosa prática de rebaixamento de salários e de não cumprimento das regras básicas do 13º e 14º mês e dos descontos para a Segurança Social, como aflitivamente é o caso dos serviços de cabeleireiro, em busca de um contrato de trabalho que justifique a autorização de residência. Haverá também a perceção do El Dorado dos reformados europeus com algum rendimento, mas essa é geograficamente mais pontual, embora de sul a norte, como acontece por exemplo com a pequena comunidade que continuo a referenciar existir em Caminha.
Este tema da população migrante que vai sendo cada vez mais importante para compreender o crescimento demográfico português, já que o crescimento natural é já esmagadoramente negativo praticamente por todo o país, não pode deixar de ter uma interpretação ambivalente. Essa ambivalência resulta da ideia de que existe sempre uma relação entre fluxos de saída e de entrada, migrações que saem, migrações que entram.
No que respeita aos fluxos de saída, a situação portuguesa pode tornar-se dramática, sobretudo a partir do momento em que envolve hoje cada vez mais a nossa população jovem mais qualificada. A nossa capacidade de intervenção neste agravar das coisas é, por um lado, limitada no curto-médio prazo e, por outro, reflete o nosso atavismo, inércia e reprodução de poderes instituídos. De facto, o gap salarial com que a economia portuguesa consegue remunerar os jovens mais capazes relativamente à economias europeias que os atraem é ainda substancial e só uma revolução na organização e produtividade empresariais poderá mitigá-lo. Mas há uma matéria que não está estritamente associada à remuneração na qual o país poderia fazer muito mais. Estou a falar dos bloqueios que existem nas organizações públicas e privadas portuguesas ao acesso dos jovens mais qualificados à progressão para os postos de chefia e direção. Quando um jovem qualificado emigra para a Europa não vai apenas em busca de um melhor salário, vai também em busca do acesso a lugares hierarquicamente mais interessantes. Ora, estou em crer que, mesmo no âmbito da nossa moderação salarial, seria possível reter mais gente qualificada com uma maior flexibilidade organizacional interna e substituição mais rápida das gerações mais velhas. Entre estas há os que empatam e os que trabalham ativamente. Este Vosso Amigo só continua a trabalhar porque na sua autoavaliação considera que não está (ainda) no primeiro grupo. Há dias, um Amigo próximo, dizia em conversa que valeria a pena dedicar uma grande parte dos Fundos do PRR a pagar reformas antecipadas dos “Empatas” para abrir caminho ao rejuvenescimento do poder. Assino por baixo.
Até lá, combinar gap salarial desfavorável e inércia na substituição de lideranças colocará inevitavelmente o país numa senda de descapitalização e perda do valioso investimento que tem sido realizado na melhoria de qualificações dos jovens.
Olhando agora para o fluxo das entradas, existe também alguma ambivalência, mas a oportunidade existe. Não podemos esquecer que Portugal enfrenta uma concorrência feroz em matéria de atração de novos residentes e concorrência ainda mais agressiva na captação de talentos. O declínio ou inverno demográfico não é apenas uma questão que fale português. É um problema europeu e dos graves. Logo, não é difícil imaginar a forte concorrência que existe nessa captação. Sabemos por experiência que a nossa participação humanitária na receção de refugiados é, nos números finais, muito penalizada pelo facto dos migrantes quererem em última instância chegar à Alemanha ou a qualquer outro país com uma imagem mais atrativa.
Mas em relação a esta desvantagem clara, existem contrapontos muito relevantes que abrem oportunidades para políticas mais sistemáticas. Os dados do Público trouxeram-me uma surpresa, não a da evidência de que os migrantes contam cada vez mais na geração de receitas para a Segurança Social, mas a da elevada recetividade que a opinião pública portuguesa apresenta relativamente à população estrangeira migrada. Ou seja, os portugueses têm uma perceção positiva da imigração e não a associam de todo ao aumento da criminalidade. Esta, sim, foi a boa surpresa. Se esta informação corresponder ao sentir profundo da sociedade portuguesa, então uma das vias de entrada do populismo mais abjeto está barrado e abre-se uma valiosa oportunidade para ir mais fundo na política de atração de população estrangeira.
Se combinarmos esta variável com a da segurança interna, comparada com origens dos migrantes e locais alternativos de destino, e com a convivialidade da nossa maneira de receber, forma-se uma oportunidade única. Costumo designar essa oportunidade como a necessidade de políticas estruturadas de atração, acolhimento e integração de migrantes de vários estratos e qualificações. Só esta via apagará de vez o risco de parte do nosso sistema produtivo enveredar por estratégias suicidas e selvagens de atração fraudulenta, como o exemplo da agricultura intensiva a sul, Odemira é o paradigma, o demonstra com a mais inequívoca evidência. Já imaginaram o desastre para a imagem internacional do produto e do terroir que seria o Douro procurar resolver as suas conhecidas dificuldades de mão-de-obra com um processo de atração de migrantes como aquele verificado em Odemira?
Creio que os Municípios e as Comunidades Intermunicipais têm aqui um valioso campo de intervenção. O tema do acolhimento e integração de migrantes começa a emergir. Este é um dos tais domínios de proximidade em que o Podr Local deve começar a alocar mais recursos. Ao mesmo tempo, que tem de ser convencido que há investimentos cujo racional tem de ser procurado, não a nível local, mas sim a nível sub-regional e regional.
Se não voltar a este espaço antes da Consoada, Feliz Natal para todos. Vai ser um dos primeiros Natais a passar fora de casa, o que não me agrada lá muito. Mas a geometria variável das famílias impõe-se à vontade de cada um. Só que vai antecipando o que nos espera seguramente neste inverno demográfico de que fazemos parte. Mas fazer parte dele já uma benesse.
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