(É verdadeiramente espantoso que, desde os tempos longínquos em que comecei a minha vida académica e a interessar-me pelos temas da economia do desenvolvimento, o indicador do produto interno bruto, ou rendimento, per capita esteve permanentemente sujeito a críticas virulentas, ódios de estimação e propostas alternativas. Não obstante resiste a todo esse vendaval e nem o aparecimento do indicador do desenvolvimento humano das Nações Unidas conseguiu inverter as coisas. Esta questão emergiu de novo no meu radar blogueiro, quando por estes dias uma simples previsão de que em 2024 Portugal será ultrapassado pela Roménia no ranking do PIB per capita europeu provocou uma avalanche de crises de consciência, remoques ao Governo, demonstrações diversas de como somos efetivamente muito bons na tipificação das nossas desgraças e insatisfações, sem que isso represente o murro na mesa necessário para unir esforços e dar a volta às situações. Como em tantas outras situações, a hipocrisia torna-se insuportável e justifica-se uma reflexão com azedume e alguma contundência sobre esta matéria.
Uma das fontes mais salientes da hipocrisia que identifico nesta matéria está relacionada com o facto do PIB pc, calculado à paridade de poderes de compra para compensar o que nunca União Monetária continua a ser um fator de perturbação os diferentes sistemas de preços que acompanham os desníveis de desenvolvimento no seu interior, continuar a ser apesar de fortemente criticado um dos indicadores-chave para repartir fundos europeus entre os países e as regiões. A hipocrisia é tanta que, em todos os períodos de programação em Portugal, se sucede a lamentável operação de através das alterações das unidades de divisão territorial estatística em Portugal garantir que o maior número de territórios continue abaixo do limiar a partir do qual o País ou a região entra em “phasing out” das ajudas dos Fundos Europeus. É também espantoso que a União não tenha ainda encontrado alternativa consistente à ditadura do PIB pc. Pensando bem, não tão espantoso assim. Existe uma razão para isso. É que para encontrar ou um indicador alternativo ou enriquecê-lo com outras dimensões é necessário introduzir a questão dos valores tais como a desigualdade/igualdade, a discriminação de género, o desenvolvimento humano, as questões da biodiversidade e adaptação climática. E, como sabemos, quando se entra nesse vasto universo do sistema de valores a União transforma-se rapidamente em Desunião. A questão é obviamente complexa mas está a conduzir a União a contradições insanáveis. Não adianta de todo apostar uma grande massa de recursos na adaptação climática e transição energética e continuar a medir o desempenho dos países e das regiões com o mais criticado mas também resiliente indicador que o PIB pc representa.
Quanto ao clamor em torno da Roménia e da sua ultrapassagem a Portugal, ele está também pintalgado de hipocrisias por todo o lado, embora tenha de reconhecer-se que esta ultrapassagem é daquelas pelas quais a mediatização das coisas aspira todos os dias. Equivale aquelas perseguições a partir do fim do pelotão ou lá bem atrás na pista e, como sabemos, isso é que verdadeiramente interessa.
Quando os ritmos de crescimento tomam conta do foco mediático, já houve tempos em que todo o bicho careta, por mais letrado que se apresentasse, esgrimia com a Irlanda à cabeça, mostrando-nos que era para ali que deveríamos olhar. Tanto mais que, para surpresa de muitos, a Irlanda apostara por uma estratégia muito diferente de priorização de Fundos Europeus, tinha apostado no Fundo Social Europeu e na formação em detrimento de fazer muitas autoestradas e tinha dado também prioridade à sua rede de aeroportos de média e pequena dimensão. O entusiasmo pela Irlanda esmoreceu um pouco quando as autoridades nacionais e as comunitárias se viram forçadas a publicar correções da medida do seu produto, pois a presença das grandes multinacionais mo País introduzia no País uma distorção tal das suas taxas de crescimento que era necessário avisar a malta de que os números tinham de ser devidamente contextualizados. Ou seja, o crescimento irlandês tem de ser amplamente contextualizado e neste processo há coisas que se destacam, eles falam inglês (sim importa e de que maneira na globalização), têm uma forte afinidade histórica com os EUA e basta ter em conta a vasta presença dos Irlandeses no País e são local privilegiado de implantação dos grandes grupos multinacionais high-tech, os tais que obrigam a rever os números do PIB e do seu crescimento e que obrigam a distinguir permanente entre o Produto Interno Bruto (o que é produzido em território irlandês) e o Produto Nacional Bruto (o que é gerado efetivamente pelos Irlandeses).
Sem retirar significado à ultrapassagem, o confronto com a Roménia em matéria de crescimento não pode de facto limitar-se à questão do PIB. A questão que deve ser colocada é esta: estarão os Portugueses dispostos a crescer mais embora suportando algumas das características adversas do crescimento romeno, tais como maior desigualdade, mais pobreza, estado social menos generoso, sistema de saúde mais precário?
Para além desta questão que alarga a dimensão dos ritmos de crescimento para outras dimensões mais valorativas sobre as quais a política tem um papel a desempenhar, a própria narrativa do crescimento que circula por aí está mal contada.
Teoricamente, sabemos que o crescimento (o per capita implica saber se crescemos o suficiente para absorver o agora anémico crescimento demográfico), que podemos designar por Y, depende um conjunto mais ou menos alargado, consoante a nossa imaginação e medida para a mesma, de varíáveis independentes e de um termo mais ou menos aleatório que inclui entre outras coisas o que não conseguimos explicar e medir:
Y = f (X1, X2, …Xn, ꜫ) como, por exemplo:
Taxa de crescimento do PIB = f(Dotação de Capital humano, Taxa de investimento em equipamento das empresas, Infraestrutura, Qualidade das instituições, Qualidade da governação, ideias com valor económico, Nível de desenvolvimento económico já alcançado para captar efeitos cumulativos , etc.
Xavier Sala-i-Martin (1997) escreveu um artigo seminal na American Economic Review sobre esta matéria, I just ran two million of regressions, que costumo apresentar como ilustração da miríade de estudos com diferentes famílias de variáveis independentes para explicar porque é que alguns países crescem mais do que outros.
Mas a narrativa está mal contada. Quando pretendemos retirar das maravilhas da econometria consequências para acelerar crescimento, por exemplo, o que é que Portugal terá de fazer para acelerar o seu crescimento, cometemos regra geral um erro crasso. É que na prática das dinâmicas de crescimento as variáveis não são verdadeiramente independentes. O que conta para os processos de crescimento não é, por exemplo, melhorar apenas a dotação de capital humano. Escolho este exemplo, porque até António Costa veio a terreiro explicar que os romenos começaram o processo com um stock de capital humano incomparavelmente superior ao nosso. Portugal tem ensaiado, e bem, nos últimos anos a recuperação desse processo, sem apagar o lado desfavorável do stock de baixas qualificações da população empregada. Mas a melhoria de capital humano não se exerce no abstrato. Ela terá de ser combinada com outras realizações, por exemplo a capacidade das empresas utilizarem essa melhoria de qualificação em processos de investimento muito concretos.
Por outras palavras, o crescimento resulta de combinações de fatores que só os países, não a econometria, podem operar. E Portugal, por várias razões que não são o foco deste post, não tem operado as combinações mais virtuosas, faltando sempre alguma coisa à combinação certa.
Por isso, deixemos de vez a hipocrisia das comparações internacionais não contextualizadas, e fixemo-nos na procura das tais combinações certas. Melhorar os ingredientes, obviamente que interessa, mas não chega, como temos percebido nos últimos tempos.
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