sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

À BOLEIA DA SUSANA PERALTA

 


(Em tempos de burguesia do hipersalário, como brilhantemente o António Guerreiro a ela se referia na sua crónica no Público, estou em fase, dirão alguns, lamecha, de me comover com escritos e matérias como aquela que a nossa intrépida Susana Peralta trouxe para a sua crónica também no Público sobre a morte da Senhora da Mala de Cartão, Linda de Suza. Não tenho como a Susana qualquer tia ou familiar próximo que tenham sido protagonistas da emigração para França, mas da primeira vez que estive em Paris, mesmo no dealbar da democracia em Portugal, fiquei praticamente uma semana em casa de elementos próximos da família da minha Mulher e fiquei a compreender melhor não a situação nos bidonvilles (a família onde estive residia em aposentos dedicados à figura da concierge perto do Parque dos Príncipes, agora terra do PSG, portanto numa zona rica de Paris), mas os riscos de toda aquela projeção para fora do País, fugindo à pobreza e construindo novas trajetórias de vida.

 

De facto, quando ainda hoje ouço a Linda de Suza cantar (ver vídeo) e sobretudo quando ela passa, na parte final da canção, do português ao francês, a verdade é que todo eu estremeço. Nunca percebi bem porquê, foi sempre assim e não o resultado da adocicada evolução que os 70 nos trazem.

Na crónica de Susana Peralta fala-se da “banda sonora da vida de milhões de pessoas em França e Portugal” e não existe melhor expressão para o que se me atravessa no espírito quando estremeço com aquela canção. No seguimento dessa entrada, muita gente enriqueceu explorando o filão, mas em meu entender nunca mais apareceu coisa mais genuína do que a valise de Linda de Suza. Muitas canções foram, entretanto, compostas para cavalgar esse mercado da emigração, algumas delas explorando os aspetos de uma cultura que gostaríamos de ver banidas pela modernidade, mas nestas coisas gosto sempre de voltar às origens e a Linda foi quem melhor expressou o sentido de identidade de quem vem de fora, não rejeita integrar-se, mas que em grande parte espera um dia reencontrar-se com a terra que a impulsionou para fora.

Nos tempos mais recentes, em função de nova evidência, tem-se insistido que a emigração mais recente é cada vez mais qualificada e, por isso, com efeitos mais perniciosos para o País porque transfere para o exterior os efeitos da inequívoca melhoria de qualificação observada nos novos fluxos de jovens que encaminhamos para o mercado de trabalho, seja a partir dos percursos regulares dos cursos científico-humanísticos, seja a partir dos diplomados das vias de dupla certificação como os Cursos Profissionais. Por vezes, há nesse argumento algo de insolente e de desprestigiante para a emigração de outros tempos. Era gente pobre e desqualificada logo o vazio que deixaram na sociedade portuguesa não seria tão grave como o que resulta agora da fuga dos mais qualificados. Este argumento é de uma tremenda injustiça e má compreensão do que foi a emigração dos anos 50 e 60. Primeiro, o nível médio de qualificação da população ativa portuguesa era baixíssimo. Segundo, o contexto em que se resolvia a velha questão “devo ir ou ficar” (cantada noutros tons pelos Clash que diziam “Should I Stay or Should I Go”) não tem comparação possível com o mundo da comunicação global de hoje, estando então limitada à velha “carta de chamada” que os mais novos hoje nem saberão o que era. Finalmente, porque a coragem que era necessária nesses termos para dar o salto, ultrapassar as barreiras da língua e reencontrar a pobreza nos primeiros anos de implantação, é totalmente escamoteada quando nos referimos aos “horrores” da fuga de talentos. O vazio que ficou resultante da saída desses corajosos nunca foi estimado e medido no seu significado mais profundo. E, além disso, o movimento de subida de salários que a emigração então provocou na origem, induzindo alguma modernização agrícola nos territórios mais rurais, foi uma mudança inconsequente e limitada a um curto período. Depois o ambiente de continuada desqualificação da população ativa haveria de encontrar na indústria dos baixos salários e nos serviços as suas fontes de escoamento, prolongando no tempo a inércia da relação baixa produtividade-baixos salários.

Até as coisas virarem de vez, a mala de cartão ficará como um ícone, um verdadeiro artefacto desses tempos. E eu continuarei a estremecer com a parte final da canção.

 

 

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