(O post de hoje, que interrompe alguma ausência determinada de novo pela concentração de trabalho profissional, foca-se no estabelecimento de uma relação algo estranha, mas que me pareceu virtuosa, entre a depressão de uma derrota, que nos reporta ao nosso Fado das alterações cíclicas de humor coletivo, e o novo disco de Ana Moura, Casa Guilhermina. Estava com maus feelings sobre o confronto com Marrocos, dada a força exaltante daquela diáspora que encontrou no futebol da Seleção e na qualidade do seu treinador um escape notável para as agruras das culturas árabe e berbere que se cruzam naquela sociedade. Por mais protegida que a Nossa Seleção tenha sido protegida face às histórias de fim de era para o Capitão Ronaldo, algum efeito terá sido sentido em torno de toda aquela novela. E, mais do que isso, no clima de suspeição em que o nosso futebol teima em viver, a indicação de um árbitro argentino, ainda por cima reincidente já que arbitrou a derrota com a Coreia do Sul, colocou imediatamente os nervos dos nossos jogadores mais arrebatados à flor da pele, afetando-lhes o raciocínio dentro de campo. E, vendo bem face ao descalabro que foi a arbitragem do árbitro brasileiro que apitou o Inglaterra-França, o árbitro argentino conseguiu até disfarçar algum possível gato escondido com rabo de fora que a sua nomeação representou. Depois, foi o nosso Fado e nada melhor do que a Voz quente e inconfundível da Ana Moura para o assinalar neste post de regresso.)
O futebol, por mais que tentemos associar-lhe ciência, teoria e racionalidade, escapa-se-nos sempre no campo profícuo da sua imprevisibilidade. Tivessem o Diogo Costa e o Rubén Dias cooperado melhor e o salto monumental do avançado marroquino teria falhado os seus objetivos. Tivesse o Bruno Fernandes afinado um pouco em baixa a sua mira e a bola não teria batido na trave e teria ultrapassado o elástico Bonoum. Tivesse o Cristiano um pouco mais de força no remate e talvez o jogo tivesse sido uma consagração para o seu desamparado fim de ciclo.
Comparando, entretanto, o jogo de Portugal com o jogo seguinte Inglaterra-França fica um amargo de boca, pois a dinâmica do futebol de ingleses e franceses superou sempre o nosso tradicional atavismo a jogar com equipas com defesas cerradas e sobretudo muito bem organizadas como a de Marrocos. E o que contou bastante foi a diferença entre a diáspora portuguesa, ausente do Catar, o que não significa menos paixão e aquela diáspora marroquina, mais de 30.000 vozes a criar no estádio um ambiente infernal, de convicção extrema na vitória depois da cabeçada vitoriosa, suscitando uma inevitabilidade que se foi tornando cada vez mais insistente até se consumar no apito final.
Quem sou eu para recriminar taticamente o sempre angustiado Fernando Santos quando a Espanha embateu também naquele muro e a circulação de bola da Espanha é claramente superior à nossa? Teremos jogado da forma mais conveniente para ultrapassar a qualidade da defesa marroquina e sobretudo o entusiasmo estoico que aqueles jogadores colocaram em todos os lances do um para um? Não encontrei entre os comentários que li e ouvi uma ideia consensual sobre essa avaliação. É neste tipo de jogos que se compreende a importância do aparentemente imutável William Carvalho, num jogo pouco esclarecido de Rubén Neves. Não deveria ter Cristiano entrado mais cedo já que aquele tipo de defesa cerceava qualquer veleidade de Gonçalo Ramos voltar a brilhar? Mais do que tudo isso, o que pareceu é que a reação dos últimos 15 minutos foi demasiado emotiva e puco coordenada, mas aí os jogadores já estavam mais fixados na falta de empatia com o árbitro do que na cerebral identificação dos melhores caminhos para alvejar a baliza.
Como sempre nestas coisas, o nosso real valor nem é o do deslumbre perante a Suiça, nem o do fracasso com Marrocos. Mas isso faz parte do nosso Fado, da nossa intrínseca incapacidade de encontrar a nossa real dimensão perante as coisas. Não é de hoje apenas. Só algumas gerações à frente encontraremos as melhores condições para encontrar esse equilíbrio e fugirmos de vez às oscilações brutais do nosso humor coletivo.
Nada melhor do que na manhã da ressaca ouvir o novo disco de Ana Moura, “Casa Guilhermina”. Um CD em tons de rosa kitch, que talvez sugira alguma influência da estética de Rosalia. Há quem diga que, à nossa escala, Ana Moura poderia ser a nossa Rosalia. Manifestamente, acho que a Ana Moura não precisa dessas comparações-alavanca. Ela tem uma voz e uma presença que se bastam a si próprias. Poderão os puristas do fado torcer o nariz à inovação estética e à procura de novas sonoridades. Talvez que uma Beatriz da Conceição se estivesse viva desancasse nestas modernices. Que fiquem com os seus pergaminhos. O Casa Guilhermina é para mim um álbum étnico e basta-me aquela VOZ a envolver-nos para a rendição incondicional. Estimo que o espetáculo tenha outras sensações para viver. Por agora fico-me com o CD. É uma forma de exorcizar o nosso FADO, pois não é contemplativo com o sabor da derrota. É um FADO evolutivo que Ana Moura nos traz. A caminho de novas gerações que nos libertem desta inércia do passado.
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