domingo, 25 de dezembro de 2022

MAS AFINAL O QUE TEM A MACROECONOMIA PARA NOS OFERECER?

 


(A 23 de dezembro, o sempre perspicaz Noah Smith, um daqueles economistas bloggers que vale a pena assinar[1], oferecia-nos uma estimulante reflexão sobre os rumos da macroeconomia atual. A reflexão integra uma série avassaladora de eventos-chave – a crise financeira de 2007-2008, com aquela combinação explosiva de crash bolsista e do imobiliário, a crise das dívidas soberanas, a crise pandémica e logo em cima, para não respirar, disrupção inflacionária e regresso à economia de guerra. Ufa! A leitura do artigo fez-me mergulhar em posts anteriores e nas minhas próprias divagações sobre o tema, sempre desconfortavelmente desiludido com a pobreza franciscana no debate macroeconómico em Portugal, seja nos muros mais recônditos da academia, seja entre aqueles que ousam ir além dessa bolha castradora.

 

Noah Smith faz parte, juntamente com economistas como Bradford DeLong, Paul Krugman, Matthew Iglesias, Adam Tooze, Matt Klein, Branko Milanovic, por exemplo, de um grupo de gente que investiu na produção de elementos regulares de publicação de ideias, distinguindo sempre entre a parte que é de acesso público e a que exige pagamento de uma assinatura específica. O que os distingue é o compromisso com uma regularidade de publicação, que obviamente tem de ser contextualizada à luz do riquíssimo e incomparável ambiente de debate de ideias que a academia americana tende a manter intra-muros e no plano da sua relação com o exterior. Claro que ter uma coluna de opinião num jornal como o New York Times, como é o caso de Paul Krugman, nos remete para um outro campeonato, mas os restantes elementos do grupo atrás citado, embora possam ter presenças esporádicas nos jornais e nas revistas de opinião americanas, granjeiam notoriedade através dos seus espaços autónomos de presença blogosfera (sob a forma de blogues, substacks ou outras).

O artigo que suscitou este post em época natalícia é uma forma de combate da modorra alimentar que por estes tempos nos cerca e tem por título o estimulante “Unlearning the macroeconomic lessons of the 2010’s”.

A ideia de que a teoria macroeconómica deve ser capaz de chegar a formulações que não dependam do contexto a que se aplicam, proporcionando, simultaneamente, explicações fundamentadas para as crises macroeconómicas sejam elas de oferta, de procura, financeiras ou resultantes do mercado de habitação e para o crescimento económico das economias é compreensível, mas está ao alcance de poucos, talvez de Keynes e poucos mais.

O que temos assistido nos últimos 15 anos é uma perturbadora oscilação na avaliação da qualidade dos modelos explicativos que estavam disponíveis. Muito por culpa da própria teoria macroeconómica que só muito recentemente conseguiu integrar as condições financeiras nos modelos macroeconómicos. Mas, mesmo assim, não foi fácil conseguir consenso sobre a explicação do epicentro da crise de 2007 nos EUA, pois entre o apontar do dedo ao crash bolsista ou ao mercado de habitação e de empréstimos sob hipoteca existiu um longo debate em que as duas partes da contenda não se deram nem por vencidos nem convencidos. Ficou-nos apenas a ideia muito importante de que as crises do setor imobiliário e habitacional têm um efeito de amplificação de instabilidade muito sério, já que os seus efeitos sobre a riqueza de um conjunto muito alargado de agentes económicos são mais amplos do que os provocados por um crash bolsista-tipo.

Mas, à medida que a recuperação da crise de 2007-2008 se mostrou agónica e com um panorama global persistente de taxas de juro zero ou negativas, todo um edifício de modelos macroeconómicos se desmoronou. Por exemplo, o olhar sobre o endividamento para poder crescer mais a curto prazo venceu resistências e dúvidas, e vários modelos demonstraram que mesmo no plano intertemporal era vantajoso recorrer ao endividamento, já que os ganhos de crescimento compensavam os impostos adicionais que tinham no futuro de sr cobrados para pagar esse endividamento. A economia do “zero lower bound” fez escola, a política monetária viu-se e desejou-se para justificar a sua existência face ao regresso convicto da política fiscal. Prestou-se mais atenção ao impacto sistémico das crises bancárias (embora em Portugal se tenha abusado da invocação desse papão). E até surgiram novas teorias como a MMT (Teoria Monetária Moderna em português) que não só rejeitaram a ideia de que o endividamento público aumentaria a taxa de juro, mas que podiam inclusivamente fazer descer as taxas de juro através do aumento das reservas bancárias e redução das ofertas dos bancos pelos fundos federais na economia americana.

 

Foi neste contexto de lições aparentemente inequívocas que emergiram da gestão da recuperação agónica verifica no início da década de 2010 que a macroeconomia começou a reconstituir-se. Pode dizer-se que a gestão pandémica reforçou essa convicção e os estímulos fiscais, mais generosos alguns como o americano de Biden, mais conservadores de outros como indiscutivelmente o português, confirmavam a relevância da política fiscal e sobretudo dos estímulos vindos do lado da despesa.

As lições pareciam seguras e a macroeconomia preparava-se para uma grande volta.

Mas o contexto mudou, a disrupção inflacionária emergiu e de novo a ideia de que uma política monetária demasiado expansionista pode precipitar a inflação regressou em força. Como o refere Noah Smith, lá se foi o ensinamento provisório de que a política monetária expansionista não provoca inflação. As relações com a gestão pandémica começaram a ser sugeridas, sobretudo na economia americana, em que o estímulo fiscal de Biden não só foi de grande magnitude, mas também porque os americanos não o gastaram imediatamente, antes o aforraram em parte. Quando os confinamentos se tornaram moderados ou inexistentes e quando o consumo regressou em força essa poupança gerada a partir do estímulo fiscal de Biden ampliou fortemente a pressão de procura sobre uma oferta fragilizada e incapaz de reagir imediatamente.

Como sempre acontece nestas coisas, precisaremos de uma nova crise para balancear as perspetivas e comparar de novo contextos. O que demonstra de forma clara que a teoria macroeconómica oscila em função desses contextos e isso não abona grande coisa a seu favor.

Poderá dizer-se: mas qual o problema? Não é apenas um problema entre académicos?

Não é bem assim. E a evidência mais séria é que os Bancos Centrais andam a tatear a situação, não sabendo bem se é preferível aliviar mais cedo a política restritiva, se correr o risco de a prolongar e com isso precipitar uma recessão nas economias mais grave do que a necessária. Entretanto, perguntam alguns se colhe continuar a apostar num referencial de estabilidade de preços em torno dos 2%.

Moral da história, talvez tivéssemos retirado precipitadamente lições para o futuro de situações fortemente contextualizadas. Ou seja, talvez tenha sido precipitado admitir que a política monetária expansionista não tende a gerar inflação. Mas continuamos a depender perigosamente da intuição ou da sagacidade dos governadores dos bancos centrais. A sua independência pode ser uma coisa bonita, mas quando juntamente com a intuição podem existir enviesamentos de outra natureza não fico lá muito sossegado com a referida independência.

 



[1] Recomendo moderação porque, na presença de tanta gente interessante, o risco é sem dar conta comprometer uma vasta percentagem do orçamento disponível no acompanhamento sistemático desse fascínio pela escrita estimulante.

 

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