domingo, 18 de dezembro de 2022

A POLÍTICA PÚBLICA VISTA POR DENTRO (II)

 


(No post anterior caracterizei essencialmente a evolução mais recente da política pública de reforço do sistema de ensino profissional, politicamente assumida e largamente financiada pelo Fundo Social Europeu. Falei de um planalto de evolução cujas razões não estão ainda devidamente compreendidas, tendo alvitrado algumas hipóteses explicativas não totalmente testadas, como se depreendeu do que escrevi. Hoje ensaio a análise da territorialização e concertação a que a oferta de cursos profissionais tem sido convidada a realizar, tendo a unidade territorial das NUTS III por referência, correspondente à ação das Comunidades Intermunicipais constituídas pela associação de municípios para esses territórios. Entretanto, tal como o primeiro-Ministro o anunciou no Congresso da Juventude Socialista de hoje, anuncia-se, está concluída a primeira fase de candidaturas, um avultado investimento com apoio do PRR para a criação de Centros Tecnológicos nas Escolas Públicas que assumem a oferta de cursos profissionais. Tudo bem no horizonte, aparentemente. Mas será assim?)

Através de um processo designado de SANQ (Sistema de Antecipação de Necessidades de Qualificações) e sob a tutela e orientação da ANQEP, a oferta de cursos profissionais pelas Escolas Profissionais e pelas Escolas Públicas que passaram a oferecer cursos desse tipo está enquadrada por um processo que ensaia a racionalização da oferta desses cursos em função de vários critérios, tais como a empregabilidade dos cursos e a evolução do mercado de trabalho em que essa empregabilidade será testada, o número de turmas que é possível abrir, a procura social das famílias, a inserção territorial, o envolvimento de empregadores. O processo tem a participação ativa de algumas Comunidades Intermunicipais (CIMs), no âmbito de uma rede de colaboração e concertação que envolve obviamente as Escolas, os Municípios, a dinâmica de envolvimento de empregadores que Municípios e as CIMs conseguem dinamizar e algumas outras instituições como Centros de Emprego (serviço público de emprego).

O processo SANQ constitui um dos raros exemplos de ensaio de territorialização de uma política pública, neste caso a da promoção do ensino profissional. Trata-se de um processo em gestação, de declarada aprendizagem institucional, que depende fortemente do empenho com as diferentes CIM assumem o processo. O contexto não é fácil porque equivale a enquadrar a atividade de oferta de cursos por parte das Escolas que passam, além de responder às exigências que a ANQEP e as Direções Gerais do Ministério da Educação que intervêm no processo (tais como as Direções Regionais dos Estabelecimentos Escolares), a responder a processos de desejada concertação e racionalização da sua oferta de cursos profissionais. Por isso, o processo não depende apenas do empenho das CIMs, mas depende muito também do modo como as Escolas entendam o processo como instrumento de promoção da qualidade do que podem oferecer em termos de vias profissionais. E arriscaria a dizer que depende também do modo as entidades da tutela Ministério da Educação entenderem este processo e se estão disponíveis para o fortalecer ou torpedear.

O processo exige, como é óbvio, tempo de aprendizagem, não está assegurado e carece de alguma continuidade de orientações, sem embargo da avaliação de experiência poder conduzir a aperfeiçoamentos.

Eis que senão quando, noutra pista, emerge uma outra dinâmica aportada pela capacidade de financiamento do PRR. Através da componente 6 do PP dedicada às qualificações e competências, estabeleceu-se o apoio à criação de Centros Tecnológicos Especializados - Investimento RE-C06-i01 de Modernização da oferta dos estabelecimentos de ensino e da formação profissional. No sítio web da ANQEP, pode ler-se que “pretende-se proceder à instalação e modernização de 365 Centros Tecnológicos Especializados em estabelecimentos de ensino públicos com oferta de cursos profissionais e em escolas profissionais, públicas ou privadas, dos quais 115 centros industriais, 30 centros de energias renováveis, 195 centros de informática e 25 centros digitais e multimédia. Os Centros Tecnológicos Especializados serão geridos por diretores da rede de escolas públicas ou por entidades privadas. Este investimento envolve a modernização e reabilitação das instalações e infraestruturas existentes e a aquisição de recursos educativos tecnológicos (equipamento)”.

Foi este apoio, que está programado para decorrer em três fases, que António Costa anunciou hoje com alguma pompa e circunstância (a primeira fase está já concluída sendo já conhecidas as Escolas que serão apoiadas). Se bem que pudesse ter sido evitada a confusão terminológica com os Centros Tecnológicos setoriais, que constituem uma das grandes realizações da política industrial em Portugal, os Centros Tecnológicos especializados enquanto investimentos de modernização das escolas com oferta de cursos profissionais nos domínios tecnológicos acima referidos podem representar um impulso interessante para a oferta. Podem também impactar a procura social por parte dos jovens e famílias e assim responder ao tal planalto de evolução a que me referia no post de ontem.

Mas, talvez ingenuamente, pode perguntar-se o seguinte: estando a decorrer um processo promissor de territorialização com ensaio não menos promissor de racionalização da oferta de cursos profissionais, não seria de esperar que o lançamento do apoio aos Centros Tecnológicos especializados tivesse em conta esse processo? Pelo que é possível perceber de tudo quanto está publicado, incluindo as listagens de escolas contempladas com o apoio e de escolas que viram indeferidos os seus pedidos de apoio ao investimento, o processo teve por foco as Escolas individualmente consideradas e não as dinâmicas em curso em cada CIM. É um facto que se registaram sessões de esclarecimento promovidas pela ANQEP junto das CIM mas, pela evidência que tenho, as CIM foram totalmente marginalizadas numa dinâmica que parece poder representar um salto qualitativo enorme na oferta de alguns Cursos Profissionais. Dirão alguns “qual é o problema?” e a força de execução do PRR tem muita força ajudará à missa da desvalorização da tal dinâmica de territorialização e racionalização de ofertas. Não passa nada e é tudo boa gente. Imagino que quem apreciou a qualidade das candidaturas o fez do ponto de vista da coerência do investimento em si, muito provavelmente marimbando-se para o modo como a oferta ficará alterada, independentemente de poderem surgir concentrações irracionais de oferta modernizada em alguns municípios.

Veremos se, na segunda fase de abertura de candidaturas, essas questões serão introduzidas, avaliando o estado da oferta após a primeira onda de candidaturas. O que pode depreender-se daqui é que o processo de territorialização e racionalização dos cursos profissionais é algo de institucionalmente frágil e sujeito aos aproveitamentos de circunstância para o desvalorizar, senão matar à nascença. E a pressão do PRR tem muita força, como até o cada vez mais instável Presidente Marcelo se esforça por reforçar ainda mais.

E uma outra pergunta surge invariavelmente. O que pensarão as CIM, desautorizadas na sua pretensão de tentar introduzir alguma racionalidade na oferta de ensino profissional no seu território? Muito provavelmente que não compensa o investimento realizado até aqui e também por aí se mata o processo.

Estou tentado a apostar com os leitores se alguma vez esta questão será mediatizada com algum relevo?

1 comentário:

  1. Para ser mediatizada teria de haver comunicação social com conhecimento aprofundado sobre o tema, o que não me parece acontecer. Na maioria das vezes, as questões mediatizadas são as que interessam a agendas políticas, ora de um lado, ora do outro da barricada, e não os desafios críticos que se colocam ao sistema educativo. Digo eu...

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